América do Sul

Análise: A lição da Bolívia

Correio Braziliense
postado em 14/06/2022 06:00
 (crédito: AIZAR RALDES)
(crédito: AIZAR RALDES)

CRISTOVAM BUARQUE - Professor emérito da UnB e membro da Comissão Internacional da Unesco para o Futuro da Educação

No mesmo dia em que o ministro da Defesa mandou carta ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) com a arrogância usual de pessoas armadas, insinuando desconfiança quanto à transparência do processo eleitoral, a democracia boliviana condenou sua ex-presidente a 10 anos de prisão, por ter contestado os resultados eleitorais que reelegeu o presidente Evo Morales. As pessoas mais velhas lembram que a Bolívia era símbolo da "democracia de banana": seus presidentes constantemente destituídos e substituídos por militares ou civis. Houve ano com mais de um presidente no espaço de poucos meses. Até que a Bolívia fez sua redemocratização e elegeu o primeiro presidente em 1982. A partir de então, todos os resultados eram respeitados.

O rigor democrático só ficou sob suspeição quando a eleição de Evo Morales foi contestada devido a uma vantagem mínima sobre seu opositor. Vale lembrar que Morales fez a primeira interferência dentro do marco legal ao induzir a reforma da Constituição que lhe permitiu reeleições sucessivas, cujos resultados apertados levaram ao golpe dado pela presidente do Congresso, sucessora legal, agora condenada a 10 anos de prisão, como golpista.

Enquanto isso, no Brasil, temos um presidente que, prevendo sua derrota, se prepara, com roteiro pronto meses antes, para dar um golpe e continuar no poder, mesmo depois de derrotado. Sua arrogância e estupidez permitem alertar para o que está preparado: levantar suspeita sobre a apuração com urnas eletrônicas; ter a justificativa pronta para alegar que houve fraude. A partir daí, pode usar diversos caminhos, um deles seria mobilizar os congressistas, inclusive os que também foram derrotados, para reconhecerem fraude e prorrogarem todos os mandatos de deputados, senadores, governadores, presidente até 2024. Hoje, isso ainda é uma ficção, fantasia, tanto quanto seria imaginar a tentativa de golpe do Trump.

Não seriam disparados tiros, o Congresso funcionaria com a maioria do centrão e outras forças, tudo isso garantido pelas Forças Armadas, cuja tradição se presta a esse tipo de intervenção. Faz parte da formação de muitos dos nossos militares separar patriotismo de democracia e não ter pelos civis o respeito de cidadãos do mesmo nível.

Por isso, a lição da Bolívia é tão importante ao condenar a ex-presidente Jeanine Anès. Também a lição que vem do Congresso americano, que apura a tentativa de golpe por Trump, em janeiro do ano passado. Golpe que serve de receituário para Bolsonaro. Com a diferença de que nossas Forças Armadas não têm a tradição democrática e respeitosa das instituições e do poder civil que têm as dos Estados Unidos. O presidente, os comandantes militares e parlamentares civis precisam perceber que desta vez não haverá anistia para os crimes de desobediência à ordem democrática. Eles terminarão presos, talvez anos depois do golpe, mas certamente não haverá esquecimento.

O livro Por que falhamos: O Brasil de 1992 a 2018 coloca a falta de julgamento dos crimes contra a democracia e a liberdade, em 1964, como uma das causas de o Bolsonaro ter sido eleito por 56 milhões de eleitores. Votos que ele realmente teve, sem fraudes, mas que não teria se os crimes da ditadura tivessem sido julgados. Os democratas brasileiros também precisam considerar que o presidente, seus ministros e as Forças Armadas estão avisando o que vão fazer: denunciar fraude e não reconhecer a derrota do Bolsonaro.

Por isso, desde já, os democratas devem agir com a única arma que têm: o apoio da população ao trabalho do TSE com as respeitadas urnas eletrônicas, apurando a vontade manifestada pelo povo, no voto. Explicitar esse apoio democrata transformando a eleição em um plebiscito do tipo feito no Chile, décadas atrás, para acabar com o regime militar de Pinochet.Todas as forças políticas chilenas, apesar de suas divergências, estiveram unidas pelo "NO" à continuação do golpe militar.

No Brasil, agora não é momento para divisão no primeiro turno, mas para uma vitória acachapante contra a minoria que está ao lado do golpe. Fazendo as urnas silenciarem as armas, não importa o que pense, o que sinta e o que ordene o ministro da Defesa. Ele tem direito a um voto, reconhecido pelas regras, com o mesmo valor de qualquer outro brasileiro com mais de 16 anos. A força dessa unidade é a melhor defesa da vontade democrata contra a força dos autoritários, dos quais, temos de reconhecer, temos recebido sucessivos alertas, com a sinceridade dos arrogantes e dos despudorados portadores de armas diante de desarmados acovardados.

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