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FUTEBOL

Artigo: Pelé, impossível esquecer

"Sobre Pelé já se escreveu tudo, principalmente os que tiveram o privilégio de com ele conviver, como os cronistas da velha guarda, por exemplo. Pelé foi o tal! Como era craque e famoso, podia ousar"

pri-0401-opiniao -  (crédito: Caio Gomez)
pri-0401-opiniao - (crédito: Caio Gomez)
José Cruz
postado em 04/01/2023 03:55

Em menos de um mês, o Brasil ganhou destacado espaço na imprensa esportiva internacional. Ironicamente, para registrar duas tristezas. A eliminação da Seleção Brasileira do Mundial do Catar e, a mais recente, a morte do Atleta do Século, Pelé. Entre pódios e alegrias, no futebol e fora dele, o Brasil esportivo também passa por traumas que entristecem a todos. Como a morte de Ayrton Senna, por exemplo, em 1994. O cortejo fúnebre de ontem, em Santos, na despedida de Pelé, lembrou o choro nacional de quando Senna foi sepultado. Nunca mais tivemos um piloto com as características do tricampeão mundial, que nos deixou prematuramente. No futebol, vibramos com outros craques que nos enchem de orgulho. Mas nenhum como Pelé. Nem aqui nem em outro lugar do mundo.

Sobre Pelé já se escreveu tudo, principalmente os que tiveram o privilégio de com ele conviver, como os cronistas da velha guarda, por exemplo. Pelé foi o tal! Como era craque e famoso, podia ousar. E foi assim que arriscou no cinema e na música. Mas o seu chão, mesmo, era a grama dos estádios onde ele desfilou com classe e jogadas criativas que hoje ainda nos deixam babando diante da TV. Porém, Pelé nunca colocou o seu valorizadíssimo prestígio internacional para combater a discriminação dos negros no esporte, aqui e mundo afora. Chegou a ser criticado por essa omissão. Mesmo assim, raramente falava sobre essa agressão no mais popular dos esportes.

Quem sintetiza esse tema é a jornalista Angélica Basthi. Em seu livro Pelé: uma estrela negra em campos verdes ela escreveu: "Em 2014, ao comentar o racismo sofrido pelo goleiro Aranha, durante um jogo pelo Santos (time que Pelé também defendeu), disse que, se tivesse parado toda partida em que alguém o chamasse de 'macaco' ou 'crioulo', todos os jogos dos quais participou teriam que ser interrompidos — admitindo, pela primeira vez, que sofria discriminação racial".

Essa abordagem me lembra de uma entrevista com Pelé, ao lado do também bicampeão mundial, Nilton Santos. Os dois moravam em Brasília. Pelé era ministro extraordinário do Esporte, governo de Fernando Henrique Cardoso. Nilton tinha uma escolinha de futebol no estádio Mané Garrincha. Por sugestão do jornalista André Gustavo Stumpf, a editoria de Esportes do Correio Braziliense reuniu os dois astros numa conversa de quatro horas. Em volta da mesa estavam craques da reportagem, como Ricardo Noblat, José Antônio Alves, Roberto Naves, Ricardo Mendes... A gravação durou quatro horas e o resultado daquele riquíssimo encontro foi publicado numa edição de 16 páginas do Correio, em 1994, se não me engano.

Quando Pelé chegou para a entrevista, Nilton contava histórias maravilhosas da Seleção Brasileira na Suécia, em 1958, ano da primeira conquista do título mundial. Nilton tratava Pelé de "Negrão". E lembrou que as loirinhas escandinavas "nunca tinham visto um crioulo, jovem (tinha 17 anos), pernas de atleta completo, e por ele logo se apaixonavam". O "Negrão" riu com vontade e confirmou aquela confidência do amigo. E foi assim durante todo o papo, sem que ninguém se ofendesse por usar tais expressões que, hoje, motivam processos e longas reportagens.

Enfim, Pelé o "Atleta do Século" mereceu todas as homenagens que recebeu "em vida", como sempre desejou.

Lamentavelmente, Brasília não pôde participar dessa despedida com lembranças que honrem o passado de Pelé por aqui. Num legítimo trambique que envolveu construtoras, a Federação Brasiliense de Futebol e a Câmara Legislativa do Distrito Federal, o Estádio Pelezão, inaugurado em 1966, no Setor de Oficinas Sul, ao lado do Carrefour, foi demolido. O ato criminoso para o esporte em geral ocorreu em 2009, sem qualquer protesto. No lugar estádio, surgiram imponentes edifícios. E o dinheiro dessa transação perdeu-se em distribuições suspeitas entre cartolas de então. Enfim, "vida que segue", como diria João Saldanha, craque do jornalismo esportivo e que, como treinador, de Pelé, inclusive, classificou a Seleção Brasileira para a campanha do tricampeonato mundial, em 1970, no México.

Pelé não foi só o craque que encantou o mundo. Ele foi mais... Não deixava repórter sem resposta e valorizava o trabalho da imprensa. Era gentil nas relações, fora de campo, claro. Como ministro chegou, certa vez, para uma solenidade no Hotel Nacional, por volta da 19h. A multidão o cercou, abraços e autógrafos. Ao ver os repórteres num "cercadinho" (perdão, leitores...) ele levantou os dois braços e, com sua voz forte e rouca, pediu um pouco de silêncio e lascou: "Vou atender os repórteres, primeiro. Eles têm hora para fechar os jornais e nós temos a noite toda para ficar aqui". E assim foi.

Como esquecer de um cara desses?

*José Cruz é jornalista 

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