DESPEDIDAS

Artigo: Glória Maria, lamentável perda

A jornalista abriu caminho para que os negros e negras chegassem às telas das emissoras, quebrando a então hegemonia branca, em um país marcado pela pluralidade étnico-racial, mas extremamente racista

Pouco resta para dizer sobre a perda da jornalista Glória Maria, a primeira negra a tomar conta e dominar a telinha, da mais expressiva emissora de tevê brasileira. Os depoimentos de autoridades, celebridades e colegas de trabalho foram lindos e emocionantes, que confirmaram a ousadia da Glória e que a tornou um ícone entre a categoria. Jornalistas são indispensáveis. Eles promovem o diálogo entre o poder e a sociedade, tornam públicos os desmandos e as ilegalidades dos poderosos e permitem que os cidadãos possam refletir, fazer escolhas, aprovar e condenar os atos das autoridades em todas as instâncias de poder. Glória Maria foi além.

Por meio de suas reportagens, ela trouxe para todos os lares os mais diferentes mundos deste planeta e curiosidades inalcançáveis pela maioria dos brasileiros. Revelou singular coragem ao protagonizar loucas aventuras. Como mulher negra, ela rompeu o machismo e enfrentou o racismo. Uma luta difícil e que parece não ter fim para o povo negro, sobretudo para os mais conscientes de seus direitos como humanos.

Ela se insurgiu contra o padrão de comportamento de barrar a entrada de pessoas negras em ambientes mais requintados. Em 2019, ela recordou o episódio em uma postagem no Instagram que vale a pena ser relido: "Racismo é uma coisa que eu conheço, que eu vivi, desde sempre. E a gente vai aprendendo a se defender da maneira que pode. Eu tenho orgulho de ter sido a primeira pessoa no Brasil a usar a Lei Afonso Arinos, que punia o racismo, não como crime, mas como contravenção. Eu fui barrada em um hotel por um gerente que disse que negro não podia entrar, chamei a polícia, e levei esse gerente do hotel aos tribunais. Ele foi expulso do Brasil, mas ele se livrou da acusação pagando uma multa ridícula. Porque o racismo, para muita gente, não vale nada, né? Só para quem sofre."

Apenas quem tem a pele negra sabe o quanto é difícil e triste a dor desse sofrimento — sem vitimismo, mas realidade construída pela estupidez humana. Glória Maria abriu caminho para que os negros e negras chegassem às telas das emissoras, quebrando a então hegemonia branca, em um país marcado pela pluralidade étnico-racial, mas extremamente racista. Mostrou que mulheres e homens negros têm capacidade, e que a inteligência não é exclusividade dos não negros. Ainda há muito a ser conquistado para se alcançar o estado de igualdade e de respeito.

Pessoalmente, conheci Glória Maria em 1994, ano em que foi inaugurado o processamento eletrônico do resultado das eleições. Estávamos no hall de entrada do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), à espera do primeiro boletim da apuração dos votos em todo o país. À época, a previsão era de que antes da meia-noite não conheceríamos os vencedores. Então, ficamos ali e conversamos sobre o avanço que a tecnologia proporcionaria no processo eleitoral. Embora ela fosse conhecida e respeitada, Glória não tinha nada de estrelismo. Pelo contrário, era simples, sem vaidade ou arrogância. Uma mulher comum e simpática.

Tomar conhecimento da sua morte, por meio das manchetes dos grandes jornais brasileiros, na manhã desta quinta-feira, despertou a tristeza adormecida e a sensação de perda de alguém insubstituível, singular e que produziu história. Quem produz história, é amada e se torna um símbolo não morre. Segue viva nos corações e mentes. Que a generosidade de Deus a acolha, com carinho e console seus familiares e amigos.

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