Por JUNE LESSA FREIRE - Mestre em educação. Licenciada em Letras. Analista de Sistemase escritora
Você está lendo, né? Isso é para lembrar o quão complexo é o nosso circuito cerebral de leitura. No caso, ignoramos o "não" e acionamos o leia artigo. Circuitos de leitura são individuais, plásticos e complexos. E as implicações da plasticidade de nossos cérebros leitores não são transitórias. As conexões entre "o como" e "o quê" lemos, e o "como" está escrito teriam importância crucial para quem lê e para a sociedade em geral.
Diante do excesso de informações, a grande tentação de muitos é se retirar para depósitos conhecidos, facilmente digeríveis, intelectualmente menos exigentes. Mas a ilusão de estarmos informados por esse dilúvio diário, dimensionadas eletronicamente e priorizadas por algoritmos poderia vir a dificultar uma análise crítica de nossas realidades complexas? Capacidades críticas podem vir a se atrofiar em cada um de nós e sem que o percebamos? Estaremos começando a perder a qualidade de atenção necessária que sustentem a leitura profunda? O que lemos, como lemos e por que lemos são fatores de mudanças do modo como pensamos? Essas preocupações não podem mais ser dirigidas apenas aos jovens.
A primeira grande transformação histórica do livro teria sido a passagem do rolo nos primeiros séculos da era cristã para o códice, o livro de páginas ajuntadas. Antes, o texto em formato de rolo, exigia uma leitura sequencial. Mas com a separação de folhas e a organização em capítulos, o acesso direto a qualquer parte do texto foi possível. A invenção do códice estaria ligada à necessidade de expansão do cristianismo e a uma melhor apresentação do texto bíblico que faz uso de referências cruzadas, especialmente a partir das edições de Estienne com seus versículos numerados.
Outra grande inovação teria sido na tecnologia da escrita, quando as palavras passaram a ser escritas separadas por espaços, permitindo a leitura silenciosa, mais veloz e mais complexa. Com a prensa de Gutemberg, a multiplicação e disseminação dos textos implicou maior debate sobre eles, a produção de análises de obras, modificando não apenas o modo como o livro foi produzido, mas também o modo como seria lido e absorvido, incluindo o surgimento de lugares responsáveis pela sua fabricação, venda, manutenção. E essa materialidade de como o texto passou a ser produzido interferiu na forma como seria elaborado imaginativamente. O fato é que cada mudança na materialidade do texto leva a cortes epistemológicos na concepção da criação e na percepção da leitura.
Ler é algo que tem que ser aprendido e a inexistência de um caminho previamente estabelecido no cérebro para a constituição dos circuitos da leitura, significa que sua formação está sujeita a variações, dependendo das exigências da língua particular do leitor e dos ambientes em que se dá o aprendizado. A neurociência vem apontando que a plasticidade do cérebro nos permite formar não só circuitos cada vez mais sofisticados e expandidos, mas também cada vez menos sofisticados, conforme fatores ambientais. Ou seja, a combinação do que lemos e do quanto lemos sobre a maneira que lemos acarretaria efeitos significativos sobre a aprendizagem geral e, mais especificamente, sobre o letramento, formação de leitores e suas consequências.Seria possível supormos que uma geração criada na Internet, invadidos por volumes de palavras, usando somente 140 caracteres para expressar por escrito seus pensamentos, teriam dificuldade em apreciar textos mais complexos?
E como todos os usuários da WWW vêm alimentando os seus cérebros com posts e textos selecionados por algoritmos, pergunto: quando você faz uma pesquisa em sites de busca, costuma passar da primeira página de resultados? A resposta predominante tem sido não. O fato é que os textos mais bem posicionados no ranking de pesquisa lá estão porque são os que melhor atendem ao conjunto de técnicas de marketing, até então definidas por profissionais de marketing e da tecnologia. Enquanto isso, a academia e a sociedade em geral estão passivas, sem a exata noção do tipo de texto que os cérebros em geral vêm se alimentando. É preciso que todos tomem ciência do que está ocorrendo e comecem a participar ativamente da discussão.
Há um princípio biológico, Use or Lose — o que não se usa, perde-se. Como afirma o neurocientista Miguel Nicolelis, "o cérebro humano é um camaleão" e se adapta conforme o seu uso. Transformações estariam ocorrendo, inclusive sobre cérebros de leitores experientes. Que todos entrem nesse debate!
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