FERNANDO JOSÉ SANT'ANA SOARES E SILVA*
No mundo de hoje, dois conflitos militares de grande gravidade se destacam: a guerra da Ucrânia e os combates em Gaza. Até agora, eles revelaram um mesmo padrão. Os vitoriosos no campo de batalha estão sendo derrotados no campo político. O objetivo inicial dos russos era derrubar o governo ucraniano e instalar um regime favorável à Rússia naquele país. Se possível, e mais adiante, anexar todo o território ucraniano à mãe Rússia, reconstruindo uma zona de amortecimento entre a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e o coração de seu território.
O diagnóstico equivocado da situação, por acreditar que a Ucrânia ruiria politicamente e que o Ocidente ficaria impassível, levou os russos a subdimensionar os meios militares empregados na invasão. Quando os avanços iniciais foram detidos, os invasores refizeram a manobra e direcionaram as suas forças para ocuparem e manterem a região do Donbass, estabelecendo uma ponte terrestre até a Crimeia.
Essa vitória no campo de batalha foi comemorada como missão cumprida, pois não se vislumbra que os russos serão desalojados dessa faixa de terra, embora os objetivos primários não tenham sido atingidos. Todavia, as consequências políticas dessa guerra não favorecem o urso branco russo. O aparato militar convencional russo perdeu credibilidade, pois havia expectativa de uma vitória fácil que se mostrou equivocada.
A liderança ucraniana revelou-se forte e conquistou respeito mundial. Após o fim do conflito, a Ucrânia possivelmente ingressará na Otan. Some-se ao novo cenário, a adesão da Finlândia e da Suécia à aliança militar Ocidental. A balança do poder não parece estável.
Em Gaza, os israelenses concluirão com êxito sua expedição punitiva contra o Hamas, porém não o extinguirá, até porque há vários integrantes daquele grupo no exterior, além do que cada órfão ou pai que perdeu um filho é um potencial membro do grupo. O Hamas impediu a aproximação entre Israel e Arábia Saudita, anulou a liderança da autoridade palestina, demonstrou que os serviços de segurança israelenses não são infalíveis e despertou uma onda antissemita no mundo todo. Independentemente do que venha a acontecer, o Hamas conquistou seu objetivo e, portanto, já ganhou a guerra para a qual se preparou. Situação péssima para o mundo, já que ajuda a legitimar o terrorismo como instrumento de luta política.
Nesse cenário complexo, outros atores relevantes se destacam e influenciam. São eles: Estados Unidos (EUA), China, Irã e Turquia. Os EUA ganham com o conflito ucraniano e perdem em relação a Gaza. Na Ucrânia, os americanos estão desgastando o poderio material e a capacidade moral de seu contendor russo sem colocar um soldado em combate. No caso de Gaza, estão ficando isolados no cenário internacional ao apoiar os israelenses, além de trazerem o conflito para o seio de sua sociedade.
A China ganha nos dois casos. Reforça os russos, embora não os endosse explicitamente, e esse apoio ser-lhe-á útil para o caso de um conflito com Taiwan, mitigando duas vulnerabilidades do dragão chinês: necessidade de energia e de comida. Sem se desgastar, aproveita seu poder econômico para se acercar de vários países árabes (cabe lembrar as negociações entre Irã e sauditas promovida pelos chineses).
O Irã, por sua vez, tornou-se um ator regional ainda mais importante. Apoiando grupos radicais, usou o Hamas na estocada recente a Israel, estimula o Hezbollah a fustigar o norte desse país e no Mar Vermelho interfere no tráfego marítimo com os piratas Houthis. Fornece armas aos russos e avança em seu programa nuclear com fins militares.
Desses quatro, quem mais ganhou foi a Turquia. Sua invejável posição geográfica, sua produção bélica e sua identidade cultural transformaram-na numa potência respeitada por todos. Enquanto abastece com armas os ucranianos, mantém relações importantes com a Rússia, valendo-se do controle da entrada e saída do Mar Negro. Posiciona-se contra Israel, assumindo-se uma liderança equilibrada para o entorno muçulmano. Integrante da Otan, é bem aceita no Ocidente pelo seu grau de secularização. Coroando esses atributos, exerce influência sobre os países da Ásia Central, todos de línguas túrquicas e mesma raiz cultural.
Dessa análise, ficam duas lições. A primeira, a vitória no campo de batalha nem sempre corresponde a uma vitória no campo político. A segunda, o mundo mudou e muitos países aproveitaram as oportunidades para se destacarem geopoliticamente. Tomara que a opinião pública brasileira esteja alerta para esses fatos e dedique mais atenção à defesa nacional. Afinal, somos parte desse mesmo ambiente.
*General de Exército da reserva, ex-chefe do Estado-Maior do Exército
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