
MÁRCIA FERRI — Gerente de projetos de Políticas Públicas em Alfabetização no Instituto Natura e KARINA STOCOVAZ — Diretora do Instituto Natura na América Latina
A América Latina é uma região marcada por paradoxos. Apesar de ser uma das áreas com maior desigualdade no mundo, conta com uma população expressiva de 657 milhões de habitantes e um PIB de mais de US$ 5 trilhões. Embora tenha avançado no acesso à educação básica, incluindo 95,5% das crianças e jovens nos sistemas educacionais, enfrenta uma tragédia silenciosa: entre as mais de 61 milhões de crianças latino-americanas em sala de aula nos anos iniciais, milhões frequentam sem aprender. Na América Latina, apenas 55,7% das crianças estão alfabetizadas na idade adequada, segundo médias regionais.
Esse fenômeno, conhecido como pobreza de aprendizagem, ocorre quando crianças chegam aos 10 anos de idade sem saber ler adequadamente. De acordo com o Banco Mundial, combater esse problema é tão urgente quanto eliminar a fome ou a pobreza extrema. Entre os países mais populosos da região, os números mostram discrepâncias alarmantes. Por exemplo, o Brasil alfabetiza apenas 56% das crianças no tempo certo, enquanto a Argentina 57%, o Chile 63%, México 71% e Colômbia 46%. O Peru apresenta um índice ainda menor, de 33,5%. Em consequência, mais de 6 milhões de crianças por ano têm seu percurso escolar comprometido. Esse cenário contribui para altas taxas de evasão escolar: 27% na Argentina, 31% no Peru, 38% na Colômbia e 46% dos jovens evadem no México. O que observamos também é que muitos jovens terminam os anos escolares sem saber ler e escrever — na Argentina são 43%, no Peru 47%, na Colômbia 39% e no México 34%, perpetuando um ciclo de exclusão social e econômica.
A pandemia de covid-19 agravou ainda mais essa situação. No Brasil, por exemplo, o percentual de crianças alfabetizadas na idade certa caiu de 55% em 2019 para 35% em 2023. Esse retrocesso reflete sistemas educacionais excludentes e frágeis, onde apenas uma parcela dos alunos conclui a educação básica com conhecimentos adequados.
Já é sabido, no campo de estudo das políticas públicas, que as deficiências na aprendizagem não se dão somente devido às formas como o ensino e a aprendizagem se efetivam, mas também às forças políticas profundas que causam a persistência desses problemas. Por isso, é fundamental que as lideranças políticas e técnicas dos países olhem para a questão da alfabetização como prioritária e foquem seus esforços políticos e técnicos para superar o problema do analfabetismo. Saber ler bem é condição imprescindível para ter sucesso ao longo da trajetória escolar.
O investimento educacional na América Latina, que é de em média US$ 3 mil por aluno ao ano, é muito inferior à média dos países da OCDE, que alcança US$ 10 mil anuais. Além das questões relacionadas ao investimento, observam-se pontos relacionados à infraestrutura, gestão da máquina pública, baixa prioridade política, políticas públicas fragmentadas e com descontinuidade, desvalorização e preparo de docentes para estarem na sala de aula, falta de sistemas de avaliação e de distribuição de material didático.
Apesar das dificuldades, há iniciativas promissoras em andamento. No Brasil, o governo federal lançou em 2023 o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada, que conta com a adesão de 27 estados, 26 capitais e 99,8% dos municípios. Observa-se também um grande empenho por parte de estados e municípios na criação e implementação de políticas públicas voltadas à alfabetização. Além disso, em setembro de 2024, o governo federal apresentou o Selo Nacional Compromisso com a Alfabetização, uma iniciativa destinada a reconhecer o trabalho das secretarias de Educação no processo de alfabetização das crianças brasileiras, destacando os avanços obtidos ao longo do ano.
Na Argentina, no fim de maio, os 24 ministros da Educação provinciais, junto com o secretário de Educação da Nação, assinaram o Compromisso Federal pela Alfabetização, que busca enfrentar o urgente desafio do processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita. Por sua vez, as províncias estão desenvolvendo seus planos e políticas jurisdicionais para lidar com a questão, incluindo ações, como a realização de diagnósticos, a formação de professores e a distribuição de materiais, entre outras iniciativas.
No México, ações contundentes estão sendo implementadas por secretarias estaduais para priorizar os aprendizados fundamentais. Além disso, países como Colômbia, Chile e Peru têm visto movimentos da sociedade civil e do setor público buscando soluções para o problema.
A alfabetização é uma ferramenta essencial para a inclusão social e o desenvolvimento econômico. Saber ler bem não garante, por si só, o sucesso escolar, mas é uma condição indispensável para que os jovens possam prosperar ao longo da vida. É fundamental que os governos latino-americanos priorizem a alfabetização, reconhecendo que ela é um pilar para combater a desigualdade e construir sociedades mais justas. O caminho é desafiador, mas experiências recentes mostram que é possível reverter esse cenário. Os esforços desses países parecem mostrar que a região segue por um caminho de priorizar o tema e acabar de vez com a pobreza de aprendizagem, que é um dos problemas raiz do baixo desenvolvimento de nossas nações. Investir em educação de qualidade é investir no futuro da região.
A América Latina precisa romper com a tragédia silenciosa de sua educação. O momento de agir é agora.