Artigo

A realidade da escravidão no Brasil

As formas contemporâneas são o trabalho análogo ao escravo, além de outras formas também previstas pela legislação brasileira, como o tráfico de pessoas para a exploração do trabalho, a escravidão sexual e até casamentos forçados

opiniao 2801 -  (crédito: Caio Gomez)
x
opiniao 2801 - (crédito: Caio Gomez)

LYS CARDOSO SOBRAL — Procuradora do Trabalho

É comum falar na escravidão como uma tragédia que aconteceu no Brasil. Os livros de história, os museus, os pontos turísticos costumam retratá-la como um fato que deixou suas fortes marcas, mas que foi superado, graças à sua abolição formal em 13 de maio de 1888. Infelizmente, porém, ela não é um passado, é uma realidade. 

A Lei Áurea não veio acompanhada das necessárias reformas socioeconômicas que poderiam ter de fato erradicado a prática no território brasileiro. Com isso, a luta no combate ao que se chama de formas contemporâneas de escravidão permanece.  

A boa notícia é que, devido a importantes medidas que adotou, o Brasil saiu da triste posição de país do Ocidente que por mais tempo manteve o regime escravagista para uma referência mundial no combate à escravidão contemporânea. Foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com o Caso José Pereira, e, cumprindo o acordo feito para evitar a condenação, efetivou ações que mudaram o panorama brasileiro. 

São exemplos o Grupo Especial Móvel de Fiscalização, estrutura composta por diversos órgãos que fiscaliza denúncias de trabalho escravo em todo o país desde 1995, a Lista Suja do Trabalho Escravo, cadastro dos empregadores que consumam a prática, a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, que monitora o cumprimento do Plano Nacional. Citem-se também a garantia de três parcelas de seguro-desemprego para as vítimas resgatadas, e a atualização do artigo 149 do Código Penal, para expor as quatro modalidades do crime de trabalho análogo ao escravo: o trabalho forçado, a servidão por dívidas, a jornada exaustiva e as condições degradantes de trabalho. 

As formas contemporâneas de escravidão são o trabalho análogo ao escravo, além de outras formas também previstas pela legislação brasileira, como o tráfico de pessoas para a exploração do trabalho, a escravidão sexual, e outros formatos menos explorados, mas existentes, no país, como os casamentos forçados. 

Desde 1995, mais de 630 mil pessoas foram resgatadas no Brasil, nas mais diversas atividades. No meio rural, ainda acontece o maior número de casos, mas, nos últimos anos, têm crescido consideravelmente os registros na zona urbana, além do trabalho doméstico. 

E o que, na prática, as equipes de fiscalização têm flagrado? Ausência de alojamentos em estrutura mínima, de água potável e comida em boas condições, de carteira de trabalho assinada, de pagamento da remuneração prometida, jornada sem controle ou extrapolando insistentemente os limites legais, maus tratos, são tipos dos problemas que, em conjunto, levam à caracterização do trabalho escravo.

Reforço da estrutura dos órgãos de fiscalização, reformas agrária e educacional, atenção para as questões de raça, concentração de renda e gênero, são ações que precisam ser priorizadas com urgência. Exemplo dessa necessidade é o concurso para auditor-fiscal do trabalho, que está sendo concluído em 2025, após mais de 10 anos da realização do último concurso, o que trouxe grande prejuízo para as ações de fiscalização, pois o quadro de auditores em campo já tem déficit de mais de 40%. 

Também é fundamental atentar para os estereótipos e preconceitos que estruturam a sociedade brasileira e perpetuam violências e escravização. Exemplifica-se com o "Caso Sônia Maria de Jesus", trabalhadora doméstica, mulher negra, com deficiência, que foi resgatada pelo Grupo Móvel em junho de 2023, após trabalhar 40 anos em condições análogas à escravidão na residência de um desembargador no estado de Santa Catarina, e, por decisão judicial, acabou retornando para a casa da família empregadora. Sônia, surda, nunca aprendeu libras, não teve acesso à educação, teve CPF registrado apenas aos 48 anos de idade, entre outras violências. A família empregadora promoveu processo para sua adoção, aos seus 50 anos de idade, alegando ser ela da família. O processo foi aberto após o reconhecimento da escravização e do resgate, e ainda está em trâmite. 

Hoje, 28 de janeiro é o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo no Brasil. A data é uma referência à chamada "Chacina de Unaí", que aconteceu em 2004, quando três auditores fiscais do trabalho e um motorista do Ministério do Trabalho foram assassinados durante uma fiscalização de trabalho escravo em fazendas na cidade de Unaí, Minas Gerais. É dia de lembrar o quanto se avançou, por certo. Mas também de registrar o que ainda é preciso ser feito para, enfim, ser eliminada essa chaga no Brasil.

 

Correio Braziliense
postado em 28/01/2025 06:00