
Jaime Pinsky — Historiador, escritor, professor titular concursado da Unicamp, doutor e livre-docente da USP
A dramaticidade de um acidente aéreo, particularmente quando ocorre com um grande avião comercial, provoca manchetes nos jornais e ocupa preciosos minutos com imagens dos destroços e entrevistas pertinentes, ou menos pertinentes na TV. Especialistas são convocados para explicar o acontecido, teorias são levantadas (e abandonadas), helicópteros se arriscam em voos rasantes para filmar o que restou daquele que já foi um "gigante dos ares", hoje reduzido a metais retorcidos, manchas de sangue e pedaços indecifráveis de corpos humanos. Narrativas são extraídas de gente que perdeu o voo e não perdeu a vida ("puxa, foi um milagre de Deus", reconhecem, agradecidos), declarações chorosas são arrancadas de parentes das vítimas, o que é compreensível, pois a morte de pessoas em um acidente é sempre uma tragédia. Um jornalista me explicava que a cobertura da mídia se justificava, uma vez que um grande avião transcontinental pode carregar, dependendo de sua configuração, cerca de 500 pessoas. "Tragédia incomparável", segundo ele.
Incomparável? Que tal dar uma olhada nos dados relativos aos acidentes "de trânsito", algo banal, cotidiano. Cotidiano até demais. Muita gente ainda morre como decorrência da colisão entre uma máquina rodante, pesando mais de uma tonelada, e um ser humano, com menos de um décimo do peso do automóvel. Mas não se trata apenas do peso: há ainda a velocidade. Dentro das cidades, se estiver rodando calmamente, o veículo deverá estar a 40km/h, mas não é raro atropelamentos ocorrerem com as máquinas estando a mais de 100km/h quando do acidente. Como não se trata de pista de corrida, dificilmente o pedestre estará a uma velocidade superior a 4km/h. Como resultado do contato desigual por conta da desproporção oriunda de tamanho, peso e de velocidade tão distintos, muitas vezes ocorre a morte do pedestre.
Há outros acidentes fatais, como colisão entre automóveis, aqueles provocados por motoristas de caminhão, além daquele que está crescendo de forma assustadora, envolvendo motos. É verdade que nem o mais competente dos alucinados, ou o mais alucinado dos terroristas, conseguiria atropelar e matar meio milhar de pessoas de uma só vez. Por outro lado — e essa é a questão —, um avião não cai todo dia, e todo dia morre gente em acidentes de trânsito. A constância do evento faz com que os números de vítimas de acidentes se tornem assustadores. Pouca gente tem ideia de que, por ano, 1,25 milhão de pessoas (um milhão e duzentas e cinquenta mil, sim, senhores) morrem em acidentes de trânsito no mundo todo, particularmente em países populosos e com trânsito caótico, como China, Índia e, infelizmente, Brasil.
Só em nosso país, segundo estatísticas oficiais recentes, mais de 33 mil pessoas perderam a vida em acidentes de trânsito, e o atropelamento fatal está presente com destaque nessa estatística. Seria necessário cair um Boeing a cada seis dias, com 500 vítimas fatais de cada vez, para igualarmos o número de pessoas mortas em nossas ruas. E estamos falando apenas de mortos, não de pessoas que ficam inválidas. Considerando um Boeing transcontinental com 500 pessoas, seria necessário que 2.500 aviões do tipo se acidentassem, provocando a morte de todos os passageiros e tripulantes, para atingirmos o número de mortos no trânsito brasileiro.
E continuamos sem fiscalizar a forma agressiva, com total desrespeito às leis de trânsito, tanto por motos, como por veículos maiores, e principalmente a desconsideração de todos para com o pedestre, estimulada pela ausência de faixas monitoradas. Que tal começar a multar quem não respeita o pedestre? Ah, e os motoristas que tomam sua cerveja ou sua caipirinha de fim de expediente "para pegar o trânsito"? Não é o caso de voltar a fiscalizar esse povo irresponsável e dificultar seu acesso ao volante? Todo mundo sabe quais são os bares e botecos de fim de expediente, onde ficam os estacionamentos dos maus motoristas, nem é preciso botar a Polícia Federal para investigar...
Como se vê, temos duas situações, facilmente explicáveis pela forma como, na realidade, dividimos os cidadãos dessa nossa sociedade supostamente justa e igualitária: o noticiário diário, o jornal, a TV, as redes sociais, que se preocupam apenas com grandes acontecimentos, não a morte banal de cada dia, tanto nas grandes cidades, quanto no interior do país. E temos muita gente morrendo por falta de consciência das pessoas que dirigem veículos, destreinadas, irresponsáveis e insensíveis e de autoridades insensíveis aos mortos de segunda classe. Trânsito disciplinado, responsável, é cartão de visitas de muitos países, e isso não deveria ter a ver com ideologia... Criticar outros países é fácil. Difícil, ao que parece, é limpar nosso quintal...