
DOUGLAS BELCHIOR, professor de história, cofundador da Uneafro Brasil e da Coalizão Negra por Direitos, diretor do Instituto de Referência Negra Peregum
O ex-presidente Jair Bolsonaro virou réu por tentar dar um golpe de Estado. A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) é histórica, mas não basta. Não pode se limitar ao 8 de janeiro de 2023. Os crimes relacionados àquele dia são só a ponta do iceberg. O racismo planejado, a necropolítica e o desmonte dos direitos humanos também precisam se assentar no banco dos réus. O ex-presidente cometeu crimes muito antes. E não só contra a democracia e o sistema político, mas contra a dignidade, a saúde e a vida da maioria da população brasileira, sobretudo da população negra.
A tentativa de golpe foi só o último ato de uma escalada autoritária. Durante quatro anos, o governo Bolsonaro atacou a Constituição Federal, os direitos sociais e o pacto civilizatório mais básico: o direito de existir. Sua política foi a da negação da ciência, da militarização da vida pública, da fome, da violência e da morte. E a maior parte das vítimas têm cor. A necropolítica não foi uma consequência de ações desconexas de um governo. Foi uma estratégia. O racismo em Bolsonaro e seu governo não é só estrutural. É planejado.
Foi planejado quando ele desmontou as políticas de cotas, atacou a Lei de Cotas nas universidades, reduziu os investimentos nos programas de permanência escolar e incentivou o fim das ações afirmativas. Foi planejado quando ele sabotou a vacinação, atrasou a compra de imunizantes e promoveu o uso de remédios sem eficácia no auge da pandemia, quando milhares de mães pretas choravam seus mortos nas periferias. Foi planejado quando ele retomou o discurso da "guerra às drogas" para legitimar a matança da juventude negra, ao mesmo tempo em que planejava blindar policiais com o excludente de ilicitude.
Bolsonaro e sua base de apoio sempre souberam o que estavam fazendo. Quando se veem pressionados, acionam a pauta do racismo como cortina de fumaça. Vide os episódios em que, para fugir de críticas, aliados dele desenterraram propostas absurdas contra cotas raciais, plantando notícias para manipular o debate. Essas ações não são acidentais. São uma tática para manter acesa a chama do ódio e mobilizar uma base reacionária que tem o racismo como elemento estruturante.
E é contra isso que o movimento negro tem lutado há décadas. Fomos nós que denunciamos o bolsonarismo muito antes de ele tentar tomar o poder pela força. Fomos nós que enfrentamos o desmonte do Estado na pandemia com solidariedade. Fomos nós que encaminhamos denúncias à Organização das Nações Unidas (ONU), à Organização dos Estados Americanos (OEA) e protocolamos um dos diversos pedidos de impeachment junto ao Congresso Nacional. Organizamos campanhas como a "Tem Gente com Fome, Dá de Comer", que arrecadou quase R$ 30 milhões e alimentou 500 mil famílias em meio à grave crise de fome que assolava o Brasil. E no segundo ano da pandemia, enquanto as corretas orientações eram de permanecer em casa, cumprimos o papel de vanguarda, convocando as ruas em protestos contra a violência policial e em revolta contra fome. Ocupamos as redes, as ruas e as urnas. E derrotamos Bolsonaro — com o voto antirracista e com luta cotidiana, de base.
Mas derrotar nas urnas não basta. O que Bolsonaro representa segue vivo. O fascismo à brasileira não recuou. Ele disputa os sentidos da democracia, transforma mentiras em doutrina e segue ameaçando nosso futuro. É por isso que o julgamento no STF é fundamental. Não por ser o fim de um ciclo — mas por ser o início de uma resposta histórica.
Bolsonaro deve ser julgado pelos atos de 8 de janeiro, sim. Mas deve, principalmente, responder pelo rastro de destruição que deixou. Pelas mortes que poderiam ter sido evitadas. Pelas políticas públicas que desmontou. Pelas vidas negras interrompidas. Pela tentativa sistemática de desmontar tudo o que lutamos para construir.
A democracia de verdade — aquela que deveria alcançar a favela, o campo, os quilombos, as aldeias e as periferias — ainda não chegou. Mas quando um criminoso do quilate de Jair Bolsonaro é levado aos tribunais, começamos a abrir uma brecha. É pouco. Mas é um começo. E o movimento negro seguirá cobrando, denunciando e mobilizando. Porque a justiça, quando tarda, pode falhar. Mas, se vier, que venha completa.