
ANTONIO AGUIAR, biólogo, professor da UnB, integra o Instituto deCiências Biológicas e a Rede Biota Cerrado
O recente colapso de parte do Aterro Sanitário Ouro Verde, em Padre Bernardo — cerca de 50 km de Brasília —, com o derramamento de toneladas de lixo sobre a bacia hidrográfica do Rio Descoberto, não é um acidente isolado. Trata-se de um sintoma claro da negligência com o licenciamento ambiental no Brasil. O que deveria ser uma barreira para proteger a sociedade e os ecossistemas tem sido tratado por setores políticos como um entrave ao crescimento. A tragédia ambiental no entorno do Distrito Federal pode ser apenas o prenúncio de outras ainda maiores.
A lama de Brumadinho, em Minas Gerais, que matou 270 pessoas e destruiu o Rio Paraopeba em 2019, foi fruto de um sistema corrompido, que priorizou lucros e velocidade de licenças em detrimento da segurança coletiva. Agora, o lixo que escorre sobre o Rio Descoberto — fonte de abastecimento hídrico de centenas de milhares de pessoas — revela que aprendemos pouco com aquele desastre. Os paralelos são gritantes: um sistema permissivo, fiscalizações fragilizadas, impactos subestimados e populações desprotegidas.
O mais alarmante é que esse desastre ocorreu sob os olhos de duas unidades federativas com alta arrecadação: o Distrito Federal e o estado de Goiás. Ambos possuem capacidade técnica e institucional para prever riscos e prevenir tragédias ambientais como essa, mas falharam. A ausência de medidas efetivas de controle, fiscalização e planejamento intergovernamental para o destino dos resíduos urbanos revela uma grave negligência. O resultado é que o ônus ambiental recai sobre as populações e os ecossistemas mais frágeis.
O Projeto de Lei nº 2.159/2021, apresentado como uma proposta de "modernização" das normas ambientais, na prática, se vier a ser implementado, tal PL desmontará a atual estrutura de fiscalização e controle ambiental no Brasil, o que provocaria novas e mais numerosas tragédias ambientais em nosso país. Um de seus pontos mais perigosos do PL é o autolicenciamento por Adesão e Compromisso (LAC), previsto no Artigo 21. Com base em mera autodeclaração, empreendimentos até mesmo de médio impacto podem receber licença automática, sem qualquer análise prévia por parte dos órgãos ambientais.
Além disso, os artigos 8º e 9º do PL isentam atividades agropecuárias e de infraestrutura do licenciamento, mesmo em áreas sensíveis. É o sinal verde para o desmatamento generalizado e a poluição legalizada. Outros dispositivos, como a supressão da licença de operação para obras lineares, a exclusão da análise de impacto climático e a desobrigação de consulta pública, completam um cenário de colapso das salvaguardas ambientais. Os impactos serão mais severos nas periferias e zonas rurais, ampliando injustiças socioambientais. Mudanças climáticas, poluição hídrica, poluição sonora, poluição atmosférica são praticamente negligenciadas e adoecem milhares de pessoas todo ano.
O que está em jogo é mais do que burocracia: é o direito de a população viver em um ambiente saudável. O impacto do desastre em Padre Bernardo será prolongado. O lixo despejado carrega metais pesados, patógenos e compostos orgânicos que se infiltram no solo, atingem os lençóis freáticos e contaminam a fauna aquática. Mesmo inseridos em Áreas de Proteção Ambiental (APA), as APA do DF, como a do Descoberto, Cabeça do Veado e Planalto Central, têm sido alvos de degradação recorrente, mostrando que o mero status legal não tem sido suficiente para garantir sua conservação efetiva. A fragilidade da gestão e a permissividade institucional tornam essas áreas protegidas apenas no papel.
Não é por acaso que essas propostas avançam em um contexto político de governos negacionistas, que fragilizam instituições técnicas, atacam cientistas e tentam reescrever a função do Estado em benefício de interesses privados. Sob a máscara da eficiência, o que se pretende é enfraquecer o licenciamento a ponto de torná-lo inútil. A suposta simplificação abre caminho para tragédias anunciadas, em que o lucro imediato vale mais que o futuro coletivo.
Em vez de assegurar um meio ambiente equilibrado e conservado, como prometemos ao mundo na ECO-92, com o princípio da sustentabilidade intergeracional, caminhamos para institucionalizar um país de rios mortos, de aquíferos contaminados e paisagens degradadas.
O PL nº 2.159/2021 é a prova viva desse retrocesso. O caso do Rio Descoberto é um aviso. Se não reagirmos agora, mais tragédias virão — com o selo da legalidade e a assinatura da omissão. Que a lama e o lixo sirvam pelo menos como alerta para não deixarmos o país ser afogado pela negligência ambiental.