
Álvaro Madeira Neto — médico sanitarista, mestre e doutorando em administração pela EASP/FGV; Gonzalo Vecina Neto — médico sanitarista, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP
O Brasil está prestes a enfrentar um debate decisivo no Congresso Nacional sobre o Orçamento de 2026 e o teto de gastos. Em agosto de 2025, inicia-se na Comissão Mista de Orçamento (CMO) a análise do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA). Nesse contexto de restrição fiscal, há um risco considerável de repetição do velho roteiro dos cortes lineares na saúde pública. A história recente mostra que cortar gastos na atenção primária à saúde (APS) durante crises econômicas amplifica custos sanitários e sociais, numa perversa lógica de falsa economia.
Um estudo da The Lancet (2024) com 4.882 municípios da América Latina evidenciou resultados claros: onde a cobertura da APS superou 70%, houve redução expressiva da mortalidade infantil, com mais de 306 mil mortes evitadas entre 2000 e 2019. Mais ainda: mesmo em períodos de recessão econômica, modelos indicam que manter ou ampliar a cobertura da APS pode reduzir em 23% as mortes infantis previstas até 2030.
Esses números deveriam guiar o debate legislativo. Apesar dessas evidências, em momentos de aperto, corta-se o orçamento da APS sob o pretexto de sua "invisibilidade política". Um erro que onera o país: programas de atenção básica custam menos de 1% do PIB, segundo o Banco Mundial, mas sua ausência gera internações evitáveis que consomem até 1,6% do PIB. Cada hospitalização evitada pela APS economiza R$ 3.800 aos cofres públicos.
Mas os custos transcendem o financeiro: a APS é o porto seguro para pré-natal, vacinação infantil, controle de doenças crônicas e orientação nutricional. Retirar seu financiamento desprotege os vulneráveis e transforma problemas tratáveis em emergências hospitalares.
A experiência internacional é pedagógica: países que mantiveram ou ampliaram investimentos na APS em períodos de crise alcançaram resultados sociais e econômicos muito superiores aos países que optaram pela austeridade rígida. A Costa Rica, por exemplo, decidiu fortalecer seus investimentos em APS após a crise econômica global de 2008. De acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), essa decisão permitiu reduzir em 12% os anos de vida perdidos por doenças evitáveis, promovendo ganhos econômicos expressivos e melhorias reais na qualidade de vida da população. Outro caso emblemático é o Chile, que, após a crise financeira de 2008, também reforçou sua rede de atenção primária e conseguiu reduzir drasticamente suas internações hospitalares por condições sensíveis à APS.
Neste momento em que o Brasil debate suas diretrizes fiscais futuras, é fundamental entender que saúde não é um item opcional ou meramente contábil no orçamento público. Investir na APS é uma estratégia anticrise altamente eficiente, tanto em termos fiscais quanto sociais, permitindo uma recuperação econômica mais rápida, com redução das perdas produtivas associadas às doenças evitáveis e internações desnecessárias. Segundo um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgado em 2022, cada real investido em APS no Brasil retornam em média quatro reais à economia, por meio de ganhos em produtividade e redução de gastos hospitalares e previdenciários.
Mais do que nunca, é hora de instituir mecanismos que blindem a APS das oscilações econômicas. Uma "cláusula de blindagem sanitária" no arcabouço fiscal poderia garantir recursos mínimos para a cobertura da atenção primária, alinhando-se diretamente aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), especialmente o ODS 3, voltado à garantia da saúde e bem-estar. A Espanha já adotou um dispositivo semelhante em sua Constituição desde 2011, assegurando mínimos orçamentários para saúde e educação mesmo em períodos de crise fiscal, com resultados efetivos e amplamente documentados pelo Banco Central Europeu.
Os parlamentares precisam compreender que o investimento em APS não representa gasto supérfluo, mas um compromisso ético, econômico e social com o futuro da economia nacional. Essa consciência pública e política torna-se ainda mais necessária em um cenário pós-pandêmico, onde fragilidades na atenção básica custaram ao país vidas e recursos incalculáveis, conforme apontou relatório recente do Tribunal de Contas da União (TCU).
Portanto, ao invés da tradicional tesourada na saúde básica, o momento exige inteligência estratégica e responsabilidade social dos tomadores de decisão. Investir na APS é apostar em uma sociedade mais saudável, produtiva e resiliente. Em outras palavras, cuidar da atenção primária é a melhor política anticrise que o Brasil pode adotar.
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