Sergio Leitão — advogado, diretor executivo do Instituto Escolhas. Foi assessor para temas indígenas e ambientais no governo Fernando Henrique Cardoso
O imbróglio decorrente do aumento abusivo das tarifas de importação de produtos brasileiros pelos Estados Unidos ganhou mais um capítulo com a abertura de uma investigação pelo governo americano para apurar práticas comerciais desleais do Brasil — entre as quais, a venda de produtos oriundos do desmatamento ilegal na Amazônia.
- Leia também: Clodo, Climério e Clésio: três meninos do Brasil
No caso do tarifaço, é evidente o caráter agressivo da medida contra os interesses e a soberania do país, motivada, como expressou o presidente americano, por questões meramente políticas, sem nenhuma razão válida que a justifique. Como bem demonstrou o governo, são os Estados Unidos quem saem ganhando no jogo da balança comercial com o Brasil.
Já a investigação sobre práticas comerciais desleais traz uma complexidade adicional, visto que são recorrentes as denúncias da exploração ilegal de recursos naturais na Amazônia, beneficiando diferentes atividades econômicas, da criação de boi para produção de carne até o plantio de soja.
Embora seja inegável o caráter oportunista da iniciativa, visto que seria ingênuo acreditar que os Estados Unidos só agora se deram conta de problemas ambientais envolvendo produtos que exportamos, é inegável que o desmatamento é uma espécie de insumo básico do qual muitas cadeias econômicas dependem para garantir sua lucratividade.
Segundo o MapBiomas, entre 1985 e 2020, o Brasil desmatou 82 milhões de hectares de vegetação nativa, praticamente a mesma extensão do incremento da área ocupada pela agropecuária no mesmo período, que foi de 81 milhões de hectares.
Isso, de acordo com o estudo do Instituto Escolhas intitulado "Como o agro brasileiro se beneficia do desmatamento", de 2022, propiciou um aumento da produção por meio da expansão da área cultivada pela via do desmatamento, seja legal ou ilegal, e não por ganhos de produtividade.
Esse aumento da produção, ao mesmo tempo em que baixou o preço da comida na mercearia da esquina, elevou a competitividade internacional do que produzimos. No caso da soja, segundo o estudo acima mencionado, o desmatamento ocorrido entre 2011 e 2014 permitiu a redução no preço médio da saca (60 kg) de R$ 3,1, totalizando R$ 6,67 bilhões do Valor Bruto de Produção desse grão em 2017.
Impulsionado pela ampliação da área plantada, que cresceu em média 5% ao ano entre 1993 e 2023, saltando de 11 milhões para 44 milhões de hectares, ultrapassamos os Estados Unidos e assumimos o posto de maior produtor mundial de soja. Enquanto isso, a produção por hectare teve uma taxa média de crescimento anual de apenas 2%, saindo de 2.120kg em 1993 para 3.423kg em 2023.
Já o Imazon, que realiza importantes investigações sobre o impacto da cadeia da carne na Amazônia, revelou que os frigoríficos habilitados a exportar para os Estados Unidos falham no controle dos seus fornecedores de gado, colocando em risco "cerca de 6,6 milhões de hectares de floresta, área equivalente a cerca de três vezes o estado de Nova Jersey".
Em tempos de Brasil sediando a COP30, é preciso não se esquecer do fato de que, no ano de 2024, como mostrou o Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG), justamente por conta do desmatamento, em especial para a criação de gado, os municípios que mais emitiram gases de efeito estufa no país estão localizados na Amazônia, ranking liderado por Altamira e São Félix do Xingu, no Pará.
Se o tarifaço americano galvanizou diferentes segmentos da nossa sociedade a saírem em defesa do país, a investigação sobre práticas comerciais desleais envolvendo o desmatamento na Amazônia pode aprofundar ainda mais as diferenças entre ambientalistas e setores econômicos sobre o modo como o Brasil implementa suas políticas de desenvolvimento.
Os ambientalistas precisam, é claro, continuar sua luta em defesa da floresta, mas não podem permitir que o governo americano os use como linha auxiliar na guerra comercial contra o Brasil. Os produtores, por sua vez, devem renunciar à tentação de defender o desmatamento em nome do interesse nacional.
- Leia também: Inteligência artificial e o futuro
Para evitar que isso aconteça, o que seria desastroso, é preciso que o governo faça valer na prática o que o presidente Lula tanto tonitrua em seus discursos: de que o Brasil não precisa mais desmatar para manter o seu lugar de grande produtor mundial de alimentos.
