ARTIGO

Nada a comemorar no Dia do Cerrado

É preciso vontade política e a conscientização de que só é possível manter a lavoura irrigada, o clima apropriado para o cultivo e produzir melhor com a natureza preservada e o equilíbrio do Cerrado

PRI-1109-OPINI -  (crédito: Maurenilson Freire)
PRI-1109-OPINI - (crédito: Maurenilson Freire)

MÁRIO BARILA, fotógrafo e ambientalista, fundador do Projeto Água Vida, de apoio e promoção de ações socioambientais

A sentença de morte do Cerrado foi selada pelo Código Florestal Brasileiro, Lei nº 12.651/2012, que estabelece uma Reserva Legal de 35% da área de um imóvel privado nos estados que fazem parte da Amazônia Legal — entre eles, Mato Grosso e Tocantins — e menos ainda, de apenas 20%, nos chamados campos gerais, fora desse limite — como é o caso de Goiás e Mato Grosso do Sul. Esses estados ocupam posição de liderança na produção de soja, segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). 

O desmatamento legal de 80% do Cerrado, portanto, traz consequências que vão muito além de uma vitória política para o agronegócio. A realidade se impõe a uma legislação feita sob encomenda do agro e que ignorou solenemente as questões ambientais.

 Outro grande golpe para o Cerrado foi a introdução da soja, espécie exótica originária da China. A região tornou-se uma gigantesca plantação desse grão, avançando sobre o bioma. A produção de um quilo de soja consome entre 2 mil e 3 mil litros de água durante o ciclo de crescimento da planta. O Brasil produziu cerca de 170 milhões de toneladas de soja na safra 2024/25, de acordo com a Conab, o que resulta em um consumo de mais de 340 a 510 quadrilhões de litros de água a cada safra.

O volume de soja produzido no Brasil é a própria definição de algo insustentável. O consumo absurdamente elevado de água está exaurindo não apenas os rios, mas também as águas subterrâneas. O Aquífero Guarani, por exemplo, apresenta uma redução de mais de 100 metros no nível da água na região de Barretos e Ribeirão Preto, localidades que produzem muita soja. O Brasil caminha para um cenário de escassez hídrica, em grande parte causada pelo consumo excessivo de água no agronegócio, principalmente no cultivo da soja.

Em algum momento, o país terá que repensar a expansão das suas fronteiras agrícolas e tentar recuperar essa vegetação nativa do Centro-Oeste brasileiro, de maneira a recompor suas reservas hídricas. O país precisa promover urgentemente uma mudança de rumo no agronegócio, com alternativas que sejam mais lucrativas, sustentáveis e consumam menos água.

Substituir parte das lavouras por agroflorestas seria uma alternativa viável para recuperar a saúde do Cerrado. A agrofloresta integra diferentes espécies vegetais, promove a biodiversidade, restaura paisagens, cria corredores ecológicos, atrai polinizadores e oferece muito mais segurança econômica com um amplo leque de produtos.

O Brasil precisa rever o seu modelo de agronegócio, sair do rumo insustentável da monocultura, especialmente de soja, e partir para outras soluções mais sustentáveis. As mudanças devem se iniciar o quanto antes, pois, se tudo continuar como está, em breve a escassez hídrica vai dizimar as lavouras e trazer enormes prejuízos sociais e econômicos para o país inteiro.

Afinal, o Cerrado também é conhecido como berço das águas, devido à sua importância vital para o abastecimento de água fluvial do Brasil e da América do Sul. Pesquisas, entre elas da Embrapa, comprovam que o bioma abriga nascentes que alimentam as principais bacias hidrográficas do país, como Rio São Francisco, Tocantins-Araguaia e Paraná-Paraguai, além de grandes aquíferos e 100% do Pantanal. 

Por isso, o desmatamento e a degradação ambiental da região ameaçam a segurança hídrica e energética, afetando milhões de consumidores. A destruição ambiental provoca ainda alterações climáticas, como seca prolongada com comprometimento na agricultura, e extinção em massa de animais e plantas que mantêm o equilíbrio ambiental. Tudo isso já começou a acontecer e pode se agravar muito no futuro próximo.

Entidades de preservação ambiental e comunidades formadas por famílias de agricultores estão se mobilizando para recuperar áreas degradadas do Cerrado, evitar e combater os incêndios na mata e produzir sem agredir o meio ambiente. Ainda temos capacidade de desenvolver tecnologias e estratégias para produzir mais e com menos recursos naturais. 

É preciso vontade política e a conscientização de que só é possível manter a lavoura irrigada, o clima apropriado para o cultivo e produzir melhor com a natureza preservada e o equilíbrio do bioma. A vida do Cerrado depende do esforço conjunto, envolvendo os produtores rurais de todos os portes, o governo, a comunidade científica e a sociedade.

 


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Por Opinião
postado em 11/09/2025 04:03
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