ARTIGO

Psicanálise negra: instrumento para a formação de novos profissionais

A psicanálise foi construída na Europa por homens brancos. É relevante a sua continuidade considerando as demandas atuais e, até mesmo, aspectos históricos negligenciados durante sua implementação

Crédito: Editora WMF Martins Fontes/Reprodução. Capa do livro Freud do divã: uma introdução crítica ao pai da psicanálise, de Beverley Clack; tradução de Waldéa Barcellos. -  (crédito: Editora WMF Martins Fontes/Reprodução)
Crédito: Editora WMF Martins Fontes/Reprodução. Capa do livro Freud do divã: uma introdução crítica ao pai da psicanálise, de Beverley Clack; tradução de Waldéa Barcellos. - (crédito: Editora WMF Martins Fontes/Reprodução)

ROBERTO RODRIGUES, jornalista e psicanalistas

A questão racial tem sido referencial bastante presente na formação de psicanalistas brasileiros. No entanto, levantamentos recentes indicam que essa ciência da saúde emocional continua a ser praticada majoritariamente por pessoas brancas. Atualmente, venho refletindo sobre casos de pessoas negras que buscam ser atendidos por psicanalistas também negros. Constantemente, recebo essa demanda, inclusive, em forma de perguntas: "Estou com um caso aqui de uma pessoa que quer ser atendida por um psicanalista negro. Você pode atender?"; "Você conhece algum psicanalista negro para indicar?"; ou, então, "Eu só vou em psicanalista negro!". Antes de falar da questão do negro na clínica, é importante fazer algumas considerações históricas. 

Vivemos numa sociedade racista. Esse fato não é novidade, mas temos que ficar atentos em como o racismo se transfigura, em como desenvolve suas metamorfoses no tecido social e nos processos de subjetivação e como inverte posições, a ponto de definir como culpado o sujeito que sofre os atos de racismo. Não se trata de uma generalização, porém, por ser estrutural na sociedade brasileira, o racismo atua direta e indiretamente; no Brasil, é cruel e criativo, entre outras expressões. Há uma ferida narcísica na constituição psíquica do negro brasileiro. São traumas oriundos dos processos de escravização, que produziram e ainda produzem outros traumas. São várias as situações em que o sujeito negro procura um/a psicanalista negro/a, pois teve uma experiência com psicanalista que não era negro/a e entende que não foi ouvido como queria. Ou se sentiu ignorado ou desconsiderado. 

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Em entrevista da psicanalista Maria Lúcia da Silva intitulada Impactos do racismo não são reconhecidos pela psicanálise, ao ser indagada sobre a abordagem do racismo na psicanálise na atualidade e como deveria ser tratada, a profissional afirmou: "Na instituição psicanálise não há um reconhecimento de que o racismo produz sofrimento psíquico. Portanto, quando alguma pessoa negra num consultório de um psicanalista branco traz o tema do racismo, do seu sofrimento, esse tema não é reconhecido, ele não é tratado como ele merece ser tratado. E, aí, muitas vezes o psicanalista vai tratar esse tema de uma forma superficial, vai dizer pro sujeito: 'Olha, isso não existe mais, isso é da sua cabeça, isso é sentimento de perseguição". Então é isso que nós vamos vivendo no cotidiano. Eu tenho que levar em conta todos os fatores identitários daquela pessoa que tá na minha clínica. Portanto, se tem um negro em seu consultório, tem que levar em conta a história dele, a história cultural, o grupo que ele faz parte; então, é quase que retomar os estudos que dão origem à própria formação, que é a história do sujeito, a singularidade daquele sujeito".

A procura de um psicanalista negro pode ser também uma expectativa de ser tratado melhor. Essa procura pode evidenciar vivências anteriores, em que o sujeito não quis ou não conseguiu permanecer, além de ser ainda uma maneira de expressar o lugar esperado. E avalio ser legítima não somente essa busca, mas o que o sujeito encontrará no psicanalista não pode ser as respostas que ele procura tão somente, mas, sim, um lugar onde suas respostas possam ser construídas. Penso que não há uma psicanálise negra, mas um movimento para a psicanálise reconhecer essa questão. A psicanálise foi construída na Europa por homens brancos, inicialmente no atendimento a sujeitos brancos, vivenciando valores daquela época (século 19 e 20), por isso, é relevante a sua continuidade considerando as demandas atuais e, até mesmo, aspectos históricos negligenciados durante a sua implementação. 

Segundo Fanon, "o discurso psicanalítico deve rever sua posição frente a diversas questões que ainda se encontram presentes na atualidade, como o racismo, o sexismo, o patriarcado e o colonialismo. Tal como ela foi concebida, e ainda mantida por diversos grupos, ela não pode ser tomada como um referencial para explicar a realidade histórica complexa em que se encontra o sujeito negro". Diante dessa realidade, temos que trabalhar junto à Federação Brasileira de Psicanálise no sentido de ampliar a presença de negros e negras nas instituições de formação profissional e de uma abertura para a compreensão da complexidade da abordagem às pessoas integrantes de minoria racial. 

 


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Por Opinião
postado em 13/09/2025 04:02
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