
Rodrigo Faria G. Iacovini — diretor executivo do Instituto Pólis e doutor em planejamento urbano pela USP; Clareana Cunha — mobilizadora da Minha Sampa e do Instituto Pólis
A proposta de tarifa zero voltou recentemente à cena nacional. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva pediu ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que calcule a viabilidade de gratuidade aos finais de semana. Mas a experiência de São Paulo mostra que o debate precisa avançar para além das medidas parciais.
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A Pesquisa Origem-Destino 2023, realizada pelo Metrô, revelou que a Região Metropolitana perdeu cerca de 3 milhões de viagens diárias por ônibus em relação a 2017 e que o índice de imobilidade chegou a 37% da população em dia útil. A criação do "Domingão Tarifa Zero", em 2023, mostrou a força da gratuidade: até março de 2025, foram registradas mais de 200 milhões de viagens gratuitas. A medida provou que existe demanda reprimida, mas também evidenciou os limites de uma política restrita ao lazer de fim de semana. O desafio real está no cotidiano: o transporte consome fatia significativa da renda das famílias trabalhadoras e sequer alcança os milhões de informais que não recebem vale-transporte.
Os impactos da exclusão ficam ainda mais claros quando se cruza a mobilidade com desigualdade. O levantamento Sampa em Foco, realizado pelo Instituto Pólis, mostra que o tempo médio de deslocamento diário na cidade segue em torno de duas horas, podendo chegar a quase três vezes mais nas periferias em comparação ao centro. Nos deslocamentos de cuidado — como levar filhos à escola ou acessar saúde e serviços —, 62% são realizados por mulheres, e mais da metade a pé. Além disso, enquanto 57% dos usuários frequentes do transporte individual pertencem às classes A e B, a população de menor renda segue dependente do ônibus. Na prática, a catraca tem cor, gênero, classe e CEP.
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O estudo Morar no centro como estratégia de mitigação climática aponta ainda que São Paulo possui mais de 87 mil domicílios vazios e 2,5 milhões de metros quadrados de terrenos ociosos na região central. Se destinados à habitação popular, poderiam abrigar 202 mil famílias de baixa renda, economizando 2h35 por dia em deslocamentos e evitando a emissão de 4,4 milhões de toneladas de CO2 em 20 anos.
É nesse contexto que surgem iniciativas como o Busão 0800, articulado por organizações e movimentos em mais de nove cidades no Brasil e em São Paulo e Belo Horizonte. A lógica é simples: requalificar o modelo do vale-transporte, transformando a contribuição patronal em financiamento coletivo e público do sistema. Em vez de garantir apenas o bilhete individual de trabalhadores formais, a arrecadação seria destinada a fundos de mobilidade capazes de sustentar a tarifa zero universal. Em Belo Horizonte, essa ideia já se traduz em projeto em tramitação, acompanhado por nota técnica de especialistas.
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O Brasil é líder mundial na aplicação da tarifa zero como política pública. Em 2025, já são mais de 132 cidades brasileiras com tarifa zero universal, mais do que nos Estados Unidos, França ou Polônia. O Brasil, sozinho, concentra um terço das iniciativas globais e abriga algumas das maiores experiências em curso.
Assim como o SUS universalizou o acesso à saúde, a tarifa zero abre caminho para que o direito à cidade seja praticado no cotidiano. O transporte público foi incluído na Constituição como direito social pela Emenda Constitucional 90, de 2015. A tarifa zero todos os dias é uma resposta jurídica, técnica, social e ambiental ao colapso da mobilidade urbana.
São Paulo mostra com clareza o que está em jogo. De um lado, a tarifa alta, a queda brutal de passageiros e a imobilidade crescente. De outro, iniciativas que provam a viabilidade da gratuidade e projetos que apontam para o financiamento extra tarifário. O ensaio do domingo foi importante, mas o próximo passo é estruturar a tarifa zero como política universal, capaz de garantir que circular pela cidade seja, de fato, um direito para todos e todas.
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