ARTIGO

Negro pode! Negro é pop!

Tornei-me o primeiro negro doutor em rádio de origem catarinense. Escrevi 14 livros. Negro pode! Tudo!

Antes da assinautura da lei Áurea, em 3 de maio de 1888, cerca de seis leis abolicionistas foram sancionadas -  (crédito: Caio Gomez)
Antes da assinautura da lei Áurea, em 3 de maio de 1888, cerca de seis leis abolicionistas foram sancionadas - (crédito: Caio Gomez)

Ricardo Medeiros jornalista, escritor, professor universitário e assessor de comunicação

Minha mãe era branca, olhos verdes, nascida em Porto União, no norte de Santa Catarina. Solteira, teve o primeiro filho aos 16 anos de idade. Uma mulher perdida, assim foi taxada. Perambulou por alguns cantos até se encontrar em Joaçaba, meio-oeste catarinense, com o preto retinto Sebastião. Em 7 de junho de 1956, tornaram-se marido e mulher. Dessa união, resultaram nove filhos. Eu, Ricardo Leandro de Medeiros, o sexto de Margaridinha, nasci em 4 de setembro de 1963, parto feito com a ajuda da minha avó paterna, Juventina.

Com as transferências do meu pai, que era da Polícia Militar, a família morou nos anos de 1960 e 1970 em Florianópolis, em casas sem luz elétrica e água encanada, situação comum em lares de pobres, residentes em morros. Em 1971, ainda com 7 anos, parti com o meu irmão Rudi para o primeiro dia de aula do curso primário na Escola Lúcia do Livramento Mayvorne, onde ele já estudava, no Morro da Caixa. A mãe colocou em meu saco plástico, desses de arroz de cinco quilos, um caderno, um lápis e uma borracha. Eu vestia uma calça azul-marinho, camisa branca e calçava um tênis azul, da marca Conga. Cursei a quinta série, em 1975, na Escola Lauro Muller.

No final daquele ano, retornamos para Joaçaba e Herval d´Oeste. Na região, colonizada por italianos e alemães, terminei o ensino fundamental e o ensino médio. Tive momentos bons e outros tristes. As garotas sentiam atração por mim, hesitavam, todavia, em ter um relacionamento comigo. "E se um dia eu casar com um negro, o meu filho também será negro? O Ricardo até que é bonitinho, mas o melhor é cada um ficar no seu canto". As cidades de Herval d´Oeste e Joaçaba somavam mais de 40 mil pessoas, sendo que apenas 4.192 (10,43%) eram negras.

Eu, goleiro nos jogos de futebol de várzea, em certa ocasião, defendi o chute de uma falta desferido por um oponente de 1,70m de altura. Miúdo, e de estatura baixa, nem mesmo havia acreditado que tinha conseguido tal proeza. Não tive tempo de comemorar nem de levantar do chão. Fui atingido nas costas pela chuteira do jogador responsável em bater a falta. Fui xingado, chamado de macaco, de nego do diabo, de nego imundo. Fiquei parado, gemendo, esperei que o jogador insano, racista, preconceituoso, saísse de perto de mim. Levantei-me calado e continuei a jogar naquela tarde de domingo. Porém, meus pais e a diretora Uda Gonzaga (Escola Lúcia do Livramento Mayvorne) me ajudaram a encarar a vida e suas armadilhas. Que eu podia ser o que quisesse, andar por onde eu quisesse. Eu era livre, inteligente, capaz de chegar aonde eu quisesse. 

No ano de 1982, após não ter obtido êxito no primeiro vestibular, voltei para Florianópolis para me preparar e buscar uma vaga no ensino superior. O local de moradia me era familiar. Juntamente com o mano Rudi, que estava finalizando letras na  Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e outros colegas, morei na escadaria da rua José Boiteux. Estudava pela manhã num cursinho. Depois do almoço, concentrava-me em rever as matérias. No quarto, colava fórmulas nas paredes frágeis, que pareciam que iriam se desfazer de tanto cupim no seu interior. Afixei principalmente fórmulas de química, biologia e física. Antes de dormir, rezava, pedia ao Ser Superior forças para continuar a batalha no dia seguinte.

Passei no vestibular. A notícia foi escutada na casa dos meus pais, em Herval d´Oeste, pelas ondas curtas da Rádio Guarujá de Florianópolis. Meu pai não se conteve. Foi para frente da casa deles e disparou seis tiros para o alto. O filho dele havia vencido. Eu era estudante de jornalismo da UFSC. Fui o terceiro negro a cursar jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina, sendo graduado em 1986. Nos anos 1990, fiz especialização em jornalismo na Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul). Foi lá que iniciei a minha carreira como professor universitário, ministrando aulas também no Centro Universitário Estácio SC e na UFSC.

Na França, na Université du Maine, atual Le Mans Université, em um ano, concluí mestrado em rádio. Em dois anos, finalizei o doutorado na mesma área. Por ter terminado o trabalho acadêmico antes do tempo programado, recebi autorização especial para defender a pesquisa, pois nunca havia ocorrido isso naquela instituição europeia. Obtive nota máxima da banca examinadora. Tornei-me o primeiro negro doutor em rádio de origem catarinense. Escrevi 14 livros. Negro pode! Tudo! Tente sempre e outra vez transpor barreiras.

 


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Por Opinião
postado em 20/09/2025 04:00
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