Patrícia Marins — especialista em gestão de crises de alto risco reputacional e sócia-fundadora da Oficina Consultoria
Escrevo de Nova York, onde acompanho a Semana do Clima e a cúpula da ONU, em um ambiente marcado por expectativa e tensão antes da abertura da plenária desta terça-feira. Nesse mesmo palco máximo da diplomacia global, dois líderes mostraram mais do que discursos distintos: revelaram projetos de mundo antagônicos.
Enquanto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva buscou reafirmar a importância do multilateralismo, da sustentabilidade e da colaboração como caminhos para a paz e o desenvolvimento, Donald Trump transformou sua fala em um palco de ataques, autopromoção e descrédito às instituições internacionais. O contraste é didático: a política como construção coletiva versus a política como espetáculo individual.
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Lula não deixou de mandar recados. Falou como um estadista ao defender a soberania nacional, citando "falsos patriotas que arquitetam e promovem publicamente ações contra o Brasil". Também criticou sanções unilaterais e apontou saídas concretas para a crise global, como reduzir gastos militares, ampliar ajuda ao desenvolvimento, aliviar dívidas de países pobres e fortalecer a governança internacional.
O presidente brasileiro foi muito além da retórica. Ecoou valores democráticos, sinalizando que, em tempos de policrise, a legitimidade vem da capacidade de oferecer respostas e de se alinhar às urgências da humanidade, não de negar sua existência. Ele trouxe um contexto do mundo real, apresentando soluções para questões da Palestina e do Irã.
Trump, em contrapartida, mostrou o tom confrontador que lhe é característico. Em vez de apontar caminhos, preferiu acusar: chamou a ONU de ineficaz, criticou políticas climáticas ao classificá-las de "green energy scams" e voltou a falar de si próprio como aquele que "encerrou sete guerras em sete meses" e, por isso, é merecedor do Nobel da Paz.
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Lula tinha um discurso pronto e o seguiu à risca. Trump, por sua vez, improvisou e concentrou a sua fala, na maior parte, em justificar a sua política interna e externa, emendando críticas ao ex-presidente Biden.
A diferença mais simbólica dos discursos talvez esteja na pauta ambiental. Enquanto Lula reforçou o compromisso com a agenda climática, tratando a transição energética como oportunidade estratégica de desenvolvimento, Trump disse que "a mudança climática é a maior cascata, maior farsa já perpetrada no mundo". Ou seja, só manteve explícito o negacionismo climático que marcou sua gestão anterior.
Na geopolítica, Lula buscou enquadrar o Brasil como mediador global e defensor da legalidade internacional, enquanto o líder norte-americano posicionou os EUA em uma narrativa de isolamento e antagonismo, na qual a ONU aparece mais como obstáculo do que como fórum de cooperação.
Apesar do tom duro adotado na tribuna, Donald Trump afirmou ter tido uma "excelente química" com o brasileiro ao se encontrar com ele nos bastidores da Assembleia. E sinalizou que pode haver uma reunião mais longa na semana seguinte. A fala pode indicar um recuo estratégico na atitude hostil e abrir espaço para uma reaproximação com o Brasil, depois de tantas acusações, das tarifas impostas e do fato de o governo norte-americano ter declarado como injusta a condenação de Jair Bolsonaro por tentativa de golpe.
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Esse novo movimento foi interpretado por aliados de Lula como sinal de reconhecimento de sua relevância diplomática. Não à toa, um líder governista resumiu: "Não há um cidadão neste mundo que resista ao charme de Lula".
Os discursos de ambos tiveram ampla repercussão internacional e lotaram de memes as redes sociais. Mas revelaram a distância entre os dois modos de narrar o poder. Lula constrói seu discurso com base em diálogo e cooperação. Trump, ao contrário, insiste na narrativa de conflito, personalismo e descrédito.
A semiótica dessa disputa revela não apenas estilos retóricos distintos, mas ideias de mundos opostas: um que convoca à confiança e outro que aposta no medo. Certos caminhos são perigosos. A história mostra que escolhas de poder baseadas no isolamento e na negação não apenas fragilizam instituições, elas multiplicam riscos e podem custar caro à paz, à economia e ao futuro comum da humanidade.
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