
Estou há décadas em Brasília, mas minha fundação, digamos assim, é pernambucana (por nascimento) e alagoana (origem dos meus pais e irmãos). Meu sotaque segue acentuado desde sempre e não é por acaso. Ele me pertence tanto quanto eu a ele. Entendo o sotaque como identidade, que extrapola o sentido da audição. Não é só voz, mas atitude. Eu consigo ver o sotaque. E, nos últimos dias, vi muitos deles, sobretudo os nordestinos, em palcos, palestras, eventos, conversas. Digamos que fiquei impregnada, com cheiro de Nordeste.
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Quando fui chamada ao palco para receber o prêmio de jornalista mais admirada na categoria "Áudio e Texto" do Prêmio 100 Admirados Jornalistas Brasileiros de 2025, não era apenas minha persona diretora de Redação, éramos eu, meu sotaque, meu Pernambuco, a Alagoas dos meus pais, a Brasília dos meus filhos. Toda a diversidade que mora em mim e também minha subjetividade. Nunca seremos um papel em branco, uma voz neutra, um cargo ou uma profissão.
Agradeço ao Jornalistas&Cia. e a todos que votaram em meu nome. No momento de agradecer no palco não pude deixar de oferecer esse prêmio a todas "as mulheres nordestinas, jornalistas nordestinas, e também às mulheres que, como eu, têm mais de 60 anos e estão dentro das redações, batalhando e transformando a nossa realidade, mudando uma história que antes a gente não conseguia enxergar".
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O que a gente não conseguia enxergar era de onde vinha tanto preconceito, inferiorização, subalternidade contra os nordestinos. Hoje publicamos uma entrevista com Octávio Santiago, autor de Só sei que foi assim — A trama do preconceito contra o povo do Nordeste, feita por Severino Francisco. O livro é fruto de um doutorado do escritor, mas também de uma indignação dele próprio, cansado de piadas e comentários depreciativos. É um mergulho profundo nas causas, como diz o autor na entrevista, é uma "luz na sala", um lampejo de conhecimento que pode iluminar um caminho de desconstrução de preconceitos estruturais. A primeira pessoa a me falar sobre sobre o livro de Santiago foi uma das colegas que concorriam ao prêmio do J&C, a cearense Maristela Crispim, fundadora e editora-chefe da Eco Nordeste, agência de notícias sobre desenvolvimento sustentável formada por jornalistas mulheres.
Ouvi falar pela segunda vez do livro, que por coincidência já estava nas mãos de Severino, no REPCOM Brasília, evento promovido pelo grupo FSB para debater reputação e comunicação pública. Comentava com uma colega justamente a profusão de sotaques e a importância disso para abraçar múltiplas realidades e aprender com todas elas.
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Do sotaque baiano do ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Sidônio Palmeira, ao de Karla Rubilar, ex-ministra do presidente chileno Sebastián Pinera, passando pelo de Roger Fisk, estrategista de comunicação do governo Barack Obama, ouvimos muitas palavras, com idiomas e sotaques diferentes, sobre reputação e sobre os desafios da comunicação nos tempos atuais.
Algumas ficaram na minha mente, como a de Sidônio: "O grande desafio é como fazer a verdade ser mais interessante que a mentira". Temos de fato de virar essa chave e conseguir fazer uma comunicação cidadã e próxima das pessoas com verdade.
Isso passa por expurgar preconceitos, reconhecer o imenso potencial criativo de todo o povo brasileiro e trazer mais sotaques para a roda em posições estratégicas e de poder. Não há nada mais forte no povo brasileiro que a sua diversidade. Precisamos valorizar isso em todas as áreas do conhecimento.
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