Artigo

A Conapir importa

Poder estar e ser em todos os espaços, racialmente falando, sem peso, sem permitir que o preconceito e/ou a discriminação racial sobrepujassem a nossa dignidade, foi fortalecedor e estimulante

A 5ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (5ª Conapir) no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, em Brasília, com o tema Igualdade e Democracia: Reparação e Justiça Racial -  (crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
A 5ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (5ª Conapir) no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, em Brasília, com o tema Igualdade e Democracia: Reparação e Justiça Racial - (crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

SÍLVIA CERQUEIRA, advogada e ex-conselheira Notório Saber do CNPIR do Ministério de Direitos Humanos

Trago, neste artigo, meu olhar sobre a Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial, realizada em setembro último, na capital do país. Experimentamos, durante cinco dias, a verdadeira convivência com a diversidade nacional. Todos os povos, territórios, comunidades, religiões, opções sexuais. Enfim, o povo brasileiro esteve ali representado, praticamente, por todos os seus segmentos, estabelecendo uma interlocução direta entre a sociedade e o governo, encaminhando as mais variadas demandas na busca de respostas com soluções factíveis, com debates calorosíssimos, dissensos e consensos, mas prevalecendo o respeito à democracia e ao Estado de Direito.

Nós nos emocionamos, cantamos, aplaudimos, cerramos os punhos, emitimos palavras de ordem nas vozes dos povos: quilombolas, indígenas, ciganos, LGBTQIAPN , migrantes, apátridas, idosos, entre outros. Todas as vozes, numa demonstração de que estávamos em uma conferência plural de combate ao racismo, ao preconceito, à discriminação racial e a todas as formas de intolerância correlatas, lembrando-nos a Conferência Internacional de Durban, na África do Sul.

Levamos uma lente pessoal de um apurado observatório, e nele foi possível capturar imagens cuja compreensão nos revelou ricos diagnósticos. O primeiro deles é que, em número, acredito nunca antes registrado, a nossa diversidade, majoritariamente negra (pretos e pardos), circulou em todos os aeroportos do país, embarcando em aviões de todas as companhias nacionais, trafegando com conferencistas, usando seus trajes coloridos, ostentando seus turbantes, cocares, lenços, leques. Seus adereços identitários, inerentes a cada grupo de forma específica, mas unidos para denunciarem as diferentes formas de experienciarem o racismo, inclusive, naqueles espaços de locomoção.

A antiga observadora pôde constatar que, fosse na recepção dos hotéis, fosse nos restaurantes, percebia-se reações gestuais e expressões de perplexidade; fosse de hóspedes ou de alguns funcionários. Via-se uma manifesta demonstração de insatisfação pouco comum e, em alguns momentos, olhares de cansaço e reprovação cuja leitura já sabemos bem o significado. Tais como: "Por que estão logo aqui?", "Eles são muitos" e deixavam escapar: "Essa é uma movimentação nunca vista". Registre-se que, alguns poucos também aplaudiam, mas uma coisa era patente: sabiam eles que não poderiam reagir. 

Assim, eles, casais, famílias, amigos(as), caminhavam acelerados, com sorrisos plásticos, sempre pelas laterais, buscando uma mesa afastada e tratavam de finalizar a permanência nos espaços em que estávamos, em massa, sempre de forma muito breve.

A nossa lente observadora, habituada a fazer essa leitura, identificava a real motivação desse típico comportamento, moldado pela força do racismo tão presente e acintoso em nossa sociedade.

Por outro lado, e em nossa observação, o mais importante foi que, com muita alegria, constatamos da outra ponta que a lógica ali tinha mudado: não estávamos arrumando, limpando, cozinhando e servindo, como sói acontecer. Nós estávamos sendo servidos! Éramos hóspedes, na posição de consumidores, enquanto intelectuais, ativistas, trabalhadores, etc.

O pertencimento racial de comando era o nosso. O peso psíquico da raça que nos acompanha sempre, por cinco dias, a despeito desses episódios, podemos afirmar que não experimentamos o desconforto racial. Estávamos juntos e fortalecidos, com a chancela e em diálogo direto com o Estado brasileiro, por intermédio dos seus representantes, governo e ministérios, como deve e tem que ser, porque somos também os construtores desse país. Essa é a consciência que devemos ter.

O que vivemos nesses dias foi a breve experiência de poder acessar o mínimo existencial, materialmente falando, cuja norma constitucional nos assegura, fazendo valer nossos direitos e privilégios legais, políticos, econômicos, sociais e ambientais, tão vilipendiados em alguns governos.

Poder estar e ser em todos os espaços, racialmente falando, sem peso, sem permitir que o preconceito e/ou a discriminação racial sobrepujassem a nossa dignidade, foi fortalecedor e estimulante.

Foi tudo muito rápido, porém muito proveitoso e, no campo simbólico, uma chama que deve permanecer acesa e, in concreto, uma meta a ser perseguida e consolidada a médio e curto prazo. Essa V Conapir (Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial) significa, para nós, um grande farol. Aproveitemos o momento. O tempo urge!

 


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postado em 11/10/2025 06:03
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