ARTIGO

Meio século de transformações na prática médica

Há meio século, a medicina era um ofício muito mais artesanal, ancorado na escuta e no toque. Hoje, tornou-se também ciência de precisão, sustentada por imagens, algoritmos e moléculas desenhadas sob medida

Exames avançados de imagem ampliaram os horizontes do diagnóstico. -  (crédito: Stockcake/Divulgação )
Exames avançados de imagem ampliaram os horizontes do diagnóstico. - (crédito: Stockcake/Divulgação )

DAVID UIP, médico infectologista, reitor do Centro Universitário FMABC, membro titular da Academia de Medicina de São Paulo

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Há meio século, a medicina era um ofício muito mais artesanal, ancorado na escuta e no toque. O Brasil ainda não contava com o Sistema Único de Saúde (SUS), que mais tarde se tornaria um marco de inclusão e acesso. Hoje, tornou-se também ciência de precisão, sustentada por imagens, algoritmos e moléculas desenhadas sob medida. Nesse intervalo, assisti — e vivi — a uma sucessão de revoluções que transformaram não apenas a forma como cuidamos, mas também as perspectivas de vida de milhões de pessoas.

Lembro-me de como a chegada da tomografia computadorizada e, mais tarde, da ressonância magnética, ampliou os horizontes do diagnóstico. Quando iniciei, contávamos basicamente com radiografias e, no máximo, tomografias iniciais. Hoje, dispomos de PET-CT, ressonância magnética funcional e exames de altíssima resolução, capazes de identificar doenças em estágios precoces e tratáveis. O mesmo aconteceu com a genética: de uma disciplina quase teórica, ela se tornou protagonista. Em 2003, o sequenciamento do genoma humano abriu caminho para a medicina personalizada, permitindo identificar genes ligados a doenças e, muitas vezes, agir antes mesmo dos primeiros sintomas.

A cirurgia seguiu trajetória semelhante. Técnicas minimamente invasivas, antes inimagináveis, tornaram-se rotina. A laparoscopia e a cirurgia robótica reduziram riscos e aceleraram recuperações. Transplantes antes impensáveis — de coração, rim, face, mãos e múltiplos órgãos — hoje já são realidade. Na oncologia, a imunoterapia e as terapias alvo-moleculares revolucionaram o tratamento, e a terapia gênica começa a corrigir defeitos que, até pouco tempo atrás, carregávamos por toda a vida.

Mas não foram apenas os grandes marcos tecnológicos que marcaram essa jornada. A medicina também se humanizou: o cuidado passou a envolver não só prolongar a vida, mas garantir qualidade, dignidade e acolhimento. Cuidados paliativos, antes tabu, tornaram-se parte essencial da prática médica.

Na infectologia, as mudanças também foram profundas. O enfrentamento do HIV/Aids, o avanço das vacinas — já entre os maiores instrumentos de saúde pública —, a descoberta de antivirais potentes e, mais recentemente, a mobilização global contra a covid-19 mostraram o poder da ciência quando sociedade, médicos e pesquisadores caminham juntos. A rapidez com que vacinas de RNA mensageiro foram desenvolvidas é, para mim, uma das maiores conquistas de nossa era.

Nos últimos anos, surgiram aliados poderosos: Big Data e inteligência artificial. Durante a covid-19, essas ferramentas ajudaram a prever picos de casos, analisar exames e orientar decisões rápidas. Paralelamente, terapias para doenças raras deixaram de ser um sonho distante para se tornarem realidade para milhares de pessoas.

Olho para trás e vejo um caminho de avanços impressionantes, mas também de novos desafios. A longevidade aumentou — a expectativa de vida do brasileiro, que era de cerca de 58 anos nos anos 1970, hoje ultrapassa os 76. Viver mais tempo exige uma medicina preparada para lidar com doenças crônicas, demências e os dilemas de um envelhecimento populacional acelerado.

Eis o momento para o Brasil se tornar protagonista. Precisamos, por meio de parcerias público-privadas, investir em novos tratamentos e estratégias para enfrentar a grande epidemia que já está em curso: a multirresistência antimicrobiana. Se nada fizermos, milhares de vidas serão perdidas nos próximos anos.

Se há algo que aprendi nesses meus 50 anos de profissão é que a medicina nunca se acomoda. A cada conquista, surge uma nova fronteira; a cada cura, um novo enigma. E é justamente essa busca incessante que mantém vivo o espírito de quem escolheu dedicar a vida a cuidar da vida.

 


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Por Opinião
postado em 30/11/2025 06:02
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