Manoel Paulo de Andrade Neto — presidente do Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCDF)
A prevalência do interesse público sobre o privado é um dos princípios fundantes do Estado Democrático de Direito. Tradicionalmente, ela se expressa na legitimidade de o Estado restringir direitos individuais para assegurar a proteção coletiva. Contudo, na era digital, essa relação ganha novos contornos: a supremacia do interesse público precisa ser reinterpretada à luz da comunicação mediada por plataformas privadas que controlam o fluxo informacional por meio de algoritmos opacos, cujo funcionamento não é transparente nem compreensível ao público. O debate não se limita mais ao poder de polícia — alcança a informação e a democracia digital.
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Em tempos de desinformação em massa e crises que se espalham na velocidade de um toque, o Estado brasileiro enfrenta um desafio inédito: comunicar-se com eficácia em um ambiente controlado por algoritmos privados. Plataformas como Instagram, Facebook e TikTok funcionam com base em engajamento — quanto mais um usuário interage, maior o alcance das publicações. É um princípio simples, mas com efeito colateral grave: perfis oficiais, como os das casas legislativas, tribunais, secretarias e hospitais públicos, têm baixo alcance orgânico. Esses órgãos publicam para informar e não se relacionar com os usuários. Por isso, suas mensagens — muitas vezes vitais à segurança, à saúde e à economia — acabam sendo entregues a uma fração mínima dos usuários.
Cria-se dependência perigosa: o poder público, que deveria ser o canal primário de informação institucional, passa a depender da lógica de sistemas privados de recomendação. Em crises, pode custar caro. O boato do "fim do Pix", por exemplo, gerou pânico e instabilidade, exigindo reação imediata do Banco Central e do Judiciário. Enquanto a desinformação viralizou, a resposta oficial quase não foi vista.
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Os algoritmos das plataformas priorizam conteúdos que geram comentários, curtidas e tempo de tela. Como os órgãos públicos são classificados como "irrelevantes", perdem visibilidade. O Senado Federal, por exemplo, segue a mesma lógica de um perfil pessoal. Não há distinção entre quem faz memes e quem publica informações de utilidade pública.
Sob a ótica jurídica, essa realidade confronta a essência da supremacia do interesse público, que justifica o poder da Administração em prol da coletividade. A informação oficial é essencial à sociedade. Negar-lhe prioridade ou visibilidade equivale a negar o direito fundamental à informação (art. 5º, XIV, CF/88) e o dever constitucional de publicidade e transparência. Assim, a atuação das plataformas, ao ocultar comunicações sob critérios comerciais, interfere na consecução de fins públicos e desequilibra a relação entre Estado e sociedade.
Quando uma instituição precisa desmentir boatos sobre decisões ou segurança financeira e sua mensagem não alcança o cidadão, abrem-se brechas para colapsos informacionais. A desinformação gera medo, e o medo traz reflexos econômicos e sociais. Em um ambiente digital volátil, a falta de alcance das comunicações oficiais é, por si só, um risco à democracia.
Propõe-se, assim, uma Lei de Reconsideração Algorítmica para Perfis Públicos, que obrigue plataformas a tratar de forma diferenciada as contas oficiais dos Três Poderes e de instituições que prestam serviços públicos. A lei deve garantir: (a) entrega de conteúdos em situações de emergência ou desinformação comprovada; (b) priorização automática de campanhas de saúde, segurança e interesse econômico; e (c) mecanismos de transparência, com relatórios públicos de alcance das mensagens oficiais. Não se trata de censura, mas de reafirmar o princípio da prevalência do interesse público, adaptado ao contexto digital. O objetivo é garantir que, quando o Estado falar, o cidadão ouça — com a mesma velocidade das informações falsas.
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Parcerias institucionais mostram que a colaboração é viável. A Meta firmou acordo com o TSE para combater desinformação; o Google mantém projetos de inclusão digital; o TikTok coopera com a OMS em campanhas de saúde. As big techs têm capacidade técnica para ajustar algoritmos conforme finalidades públicas — falta uma base jurídica que torne essa cooperação permanente e auditável.
A proposta não busca conflito entre Estado e plataformas, mas institucionalizar uma cooperação transparente. O Estado deve deixar de ser "tolerado" e ser reconhecido como ator essencial no ecossistema digital. Garantir isso é proteger a própria democracia informacional.
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