ARTIGO

Entre a justiça e o abandono: políticas públicas para órfãos do feminicídio

O feminicídio não tira apenas a vida de uma mulher. Ele rompe a rede familiar e marca para sempre a vida de crianças e adolescentes que perderam suas mães.

Ivonete Granjeiro advogada, professora (UnDF), consultora legislativa de direitos humanos (CLDF) e doutora em psicologia (UnB) 

 

No Brasil, o termo "feminicídio" ganhou destaque com a aprovação da Lei nº 13.104/2015, que o qualificou como o homicídio cometido contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, isto é, quando envolve violência doméstica e familiar ou menosprezo/discriminação à condição de mulher.

Apesar do avanço normativo, há ainda dificuldades na quantificação, disponibilidade e análise de dados oficiais acerca das vítimas diretas e indiretas do feminicídio. A principal fonte de informação dos feminicídios, em regra, são os registros da segurança pública, cuja aplicação depende do entendimento aplicado no momento do registro do crime. Assim, feminicídios podem ser tratados como homicídios simples ou lesões corporais seguidas de morte, o que invisibiliza a real dimensão do fenômeno. Além disso, não há obrigatoriedade do registro — pela polícia —, das vítimas indiretas, principalmente as menores de idade, para encaminhamento à rede de proteção disponibilizada pelo poder público.

O feminicídio não tira apenas a vida de uma mulher. Ele rompe a rede familiar e marca para sempre a vida de crianças e adolescentes que perderam suas mães. A perda do pai/agressor também gera dor e sofrimento, em consequência da prisão, da fuga ou do suicídio.

Considerando que cada mulher assassinada deixa cerca de dois ou três filhos, os órfãos do feminicídio se transformam em vítimas invisibilizadas de uma tragédia que se eterniza ao longo da vida. Segundo pesquisas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Ministério Público, "os órfãos do feminicídio estão entre as vítimas mais esquecidas pelas políticas públicas", por faltarem mecanismos de proteção imediata dessas vítimas, com atendimento e acompanhamento psicossocial, apoio financeiro e jurídico, além do acesso a serviços de saúde, educação e assistência social.

Dessa forma, cabe ao poder público, nos âmbitos federal, estadual e distrital, investir em serviços de atenção integral às vítimas indiretas do feminicídio, por meio de uma rede de acolhimento e proteção. O cuidado com esses órfãos mostra-se relevante no enfrentamento à violência de gênero e na construção de uma sociedade mais conscientizada sobre o tema. 

Atualmente, não há no Brasil uma política nacional específica para órfãos do feminicídio. Alguns projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional propõem a criação da Política Nacional de Proteção e Atenção aos Órfãos do Feminicídio, com previsão de pensão especial e apoio psicológico. Em 2023, foi aprovada a Lei Federal nº 14.717/2023, que instituiu pensão especial aos filhos e dependentes menores de 18 anos de idade, órfãos em razão do crime de feminicídio — cuja renda familiar mensal per capita seja igual ou inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo. 

No Distrito Federal, há especificamente dois programas sociais de atendimento às mulheres em situação de extrema vulnerabilidade e aos filhos que perderam suas mães em razão da violência de gênero: o Programa de Aluguel Social — que concede assistência financeira temporária de R$ 600 mensais — e o Programa Acolher "Eles e Elas", que oferece suporte financeiro e psicossocial a crianças e adolescentes órfãos do feminicídio. 

Todavia, é preciso criar outros programas de assistência aos órfãos, como um Fundo Nacional de Apoio aos Órfãos do Feminicídio, previsão legal de pensão vitalícia custeada pelo Estado, protocolo de registro dos filhos da vítima de feminicídio nas delegacias, bem como protocolo de urgência para suspensão imediata do poder familiar do agressor e, por fim, capacitação de equipes multidisciplinares para atendimento especializado, na área de saúde, educação e assistência social.

Os órfãos do feminicídio representam uma realidade comovente da violência de gênero. Entre a necessidade de punir o agressor e o abandono que recai sobre os filhos das vítimas, ergue-se uma zona cinzenta de desproteção que viola os princípios constitucionais da dignidade humana, da prioridade absoluta da infância e da proteção integral prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

 

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