
Doutora Jane Klebia — deputada distrital
Falar de violência doméstica no Brasil é falar de uma estrutura social que ainda sustenta, sem pudor, a falsa superioridade masculina. Uma cultura que atravessa gerações, molda comportamentos, silencia mulheres e autoriza — de forma explícita ou silenciosa — que homens ajam com brutalidade quando são contrariados.
Mas é também falar sobre racismo. Porque, neste país, ser mulher já é fator de risco — e ser mulher negra é estar, estatisticamente, nas margens onde a violência é mais frequente, mais severa e mais invisibilizada.
A verdade é simples e incômoda: a violência doméstica não nasce do nada. Ela é construída. É fruto de um modelo de masculinidade baseado no mando, no controle e na convicção de que a mulher existe em posição inferior. Quando essa mulher é negra, essa inferiorização é ainda mais profunda, sustentada por séculos de desigualdade racial.
Os exemplos recentes mostram o quanto essa lógica é mortal. Um homem matou duas mulheres porque não aceitava receber ordens de chefes mulheres. Outro passou o carro por cima da ex-companheira, deixando-a sem as pernas, como se o corpo dela fosse descartável diante de sua frustração. No Distrito Federal, uma militar do Exército foi assassinada a facadas e queimada dentro do quartel, vítima da violência de um colega que jamais aceitou sua autonomia e seu lugar profissional.
Esses crimes não são exceções. São sintomas de um país onde homens ainda se sentem autorizados a punir mulheres que ousam dizer "não". E, quando olhamos para quem mais morre, a desigualdade racial salta aos olhos: a cada 10 mulheres assassinadas no Brasil, sete são negras. Esse dado, reiterado pelo Atlas da Violência, escancara que a violência doméstica tem cor e é atravessada pelo racismo estrutural.
Vivemos numa sociedade que educa meninas para agradar e obedecer, enquanto ensina meninos a dominar e não demonstrar fragilidade. Para meninas negras, essa lógica vem acompanhada de outro peso: o da desumanização histórica, da hiper-responsabilização e da ideia de que precisam suportar mais e reclamar menos. Na vida adulta, isso se traduz em maior desemprego, informalidade e salários menores, o que amplia a vulnerabilidade e dificulta a ruptura com o agressor.
O resultado é devastador: homens que não sabem lidar com frustração e mulheres negras expostas a um ciclo de violência agravado pela exclusão social. Essa formação emocional mutilada não é destino — é escolha social. E, por isso, pode, e deve, ser transformada.
É urgente investir em educação para igualdade de gênero desde a infância, ensinando respeito, empatia e limites. Uma educação que deixe claro que mulher não é propriedade e que corpos negros têm pleno valor e dignidade.
Famílias, escolas, igrejas, governo e mídia precisam assumir corresponsabilidade. Não há política pública suficiente se a sociedade continuar naturalizando a violência e ignorando que as mulheres negras são as maiores vítimas.
No Distrito Federal, avançamos com políticas estruturantes — como o Na Hora Mulher, o fortalecimento da rede de proteção, o incentivo à autonomia econômica e a ampliação de serviços especializados. Mas, como delegada e como parlamentar, sei que leis e equipamentos públicos não bastam se não enfrentarmos o verdadeiro alicerce da violência: o machismo estrutural que forma homens incapazes de reconhecer a humanidade das mulheres — e o racismo estrutural que insiste em negar dignidade plena às mulheres negras.
Violência doméstica é epidêmica. É política. É estrutural. E é racial. E, enquanto não mexermos nos pilares culturais que sustentam essa lógica — a posse, o controle, a misoginia, o racismo, a naturalização do sofrimento feminino —, continuaremos enterrando mulheres que ousaram existir fora do papel que lhes foi imposto.
Enquanto não desmontarmos esses pilares, seguiremos enterrando mulheres que ousaram existir fora do papel imposto. O Brasil precisa escolher entre conviver com números de guerra ou reeducar sua sociedade para que mulheres — especialmente as mulheres negras — possam viver sem medo, amar sem risco e liderar sem punição.
Eu sigo ao lado de cada uma delas. Porque proteger mulheres não é apenas um dever institucional — é um compromisso moral com o país que queremos construir.
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