ARTIGO

Encruzilhada histórica aos 77 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos

Entre a esperança democrática e o recrudescimento autoritário, vivemos a urgência de proteger direitos e responsabilizar quem atenta contra a democracia

Opinião 18/12 -  (crédito: Caio Gomez)
Opinião 18/12 - (crédito: Caio Gomez)

Rogério Sottilidiretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog. Foi Secretário Especial de Direitos Humanos do governo federal

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No último 10 de dezembro, quando o mundo celebrou os 77 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, fomos novamente lembrados da necessidade de reafirmar o pacto ético surgido após a Segunda Guerra Mundial. Em 2025, porém, essa data tornou-se alerta. A promessa universal dos direitos humanos é erodida diariamente, internacionalmente e no Brasil, onde forças autoritárias tentam reconstruir um projeto baseado na violência, na mentira, na impunidade, no saque ao bem público e na destruição de direitos.

O ano de 2025 expôs essa encruzilhada. A extrema-direita avançou globalmente, corroendo instituições, desacreditando a imprensa, normalizando a violência política e disseminando desinformação em escala industrial. Como advertiu Hannah Arendt, regimes autoritários prosperam quando constroem realidades nas quais os fatos deixam de significar algo — terreno que se tentou adubar no Brasil e em outros países. Ao mesmo tempo, houve resistência: democracias à beira de rupturas frearam retrocessos.

O Brasil ocupou lugar decisivo. Apesar de pressões, reorganizou políticas públicas, recuperou presença internacional, enfrentou a fome e reafirmou compromissos com a democracia. Generais foram presos pela primeira vez desde a redemocratização; um ex-presidente foi responsabilizado criminalmente; o STF manteve a centralidade do Estado Democrático de Direito. Houve mobilização social e fortalecimento institucional.

Esses avanços convivem com contradições. A crise atual deriva da impunidade da transição pós-ditadura e da recusa histórica em enfrentar raízes coloniais e escravocratas da desigualdade racial e da violência institucional. Como disse Milton Santos, vivemos num sistema que universaliza vulnerabilidades e transforma populações em descartáveis. No plano político, assistimos à desdemocratização, na qual rituais democráticos permanecem, mas perdem substância ética.

A tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 expressou um projeto que busca corroer as bases da convivência democrática. Ele prospera em sociedades que confundem justiça com vingança e evitam revisitar pactos que impediram o país de responsabilizar torturadores da ditadura.

Por isso, a responsabilização de Bolsonaro e de seus articuladores civis e militares é indispensável. A discussão sobre reinterpretar a Lei da Anistia pertence ao campo democrático e aos compromissos do Brasil com tratados internacionais de direitos humanos.

O Instituto Vladimir Herzog tem contribuído de forma decisiva. Atuamos como amicus curiae na ADPF 320, que discute a necessidade de reinterpretar a Lei da Anistia à luz da Constituição e da Corte Interamericana. Essa incidência toca feridas históricas. O absurdo de golpistas pedirem anistia revela o quanto a democracia ainda é tratada como concessão, não como direito coletivo.

Também alertamos para a urgência de retomar caminhos da Comissão Nacional da Verdade. Nosso levantamento sobre suas recomendações evidencia a ausência de mecanismos robustos para garantir memória, verdade, justiça e reformas que impeçam a repetição de graves violações.

Esses debates serão centrais em 2026. Mais do que preservar instituições e defender a democracia, é imprescindível que se mostre qual tipo de democracia queremos. Isso significa impulsionar direitos humanos, cultura e educação como pilares de um país que não aceita retrocessos, mas que avança.

O Instituto defende que não basta manter o que temos: precisamos construir algo melhor, mais sólido e verdadeiramente transformador.

Renovar o Congresso será tarefa decisiva. Não votar em quem defende tortura; promove racismo, homofobia, misoginia, xenofobia ou perseguição religiosa; ataca jornalistas, artistas, educadores e defensores de direitos humanos; pactua com milícias; afronta a Constituição. Trata-se de responsabilidade democrática elementar, compatível com a tradição brasileira.

No cenário internacional, o Brasil terá responsabilidades ampliadas. Num mundo marcado por deslocamentos forçados, guerras prolongadas, violações massivas e colapso do multilateralismo, o país pode recuperar sua tradição diplomática de defesa do diálogo e da paz, reafirmando a centralidade da Declaração Universal.

O Instituto Vladimir Herzog concluiu a campanha 50 anos por Vlado, lembrando um jornalista que enfrentou tortura e censura com a firmeza de quem sabia que a democracia é projeto permanente. Sua memória nos convoca à coragem cívica e à disposição de enfrentar injustiças.

Por tudo isso, 2026 será um ano-encruzilhada. As forças autoritárias seguem organizadas, mas há energia democrática vibrante: educadores, artistas, jornalistas, povos tradicionais, lideranças comunitárias, juventudes e defensores de direitos humanos insistem que a esperança é possível.

Que os 77 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos nos lembrem que nenhum direito está garantido para sempre e sirvam como chamado à responsabilidade. O Brasil pode afirmar-se como liderança democrática global se fortalecer instituições, responsabilizar golpistas, proteger vidas e renovar o pacto civilizatório que nos trouxe até aqui. Só assim poderemos, de forma consciente e coletiva, colocar a dignidade humana no centro do nosso futuro.

 

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Por Opinião
postado em 18/12/2025 06:00
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