ARTIGO

Quando a agenda vira fato penal (ir)relevante

Nos tempos atuais, se revela impossível qualquer cidadão exercer controle efetivo sobre o fato de seu número de telefone constar em agendas alheias

 A dinâmica das tecnologias digitais dissocia o registro do contato de qualquer manifestação consciente de vontade  -  (crédito: Porapak Apichodilok/Pexels)
A dinâmica das tecnologias digitais dissocia o registro do contato de qualquer manifestação consciente de vontade - (crédito: Porapak Apichodilok/Pexels)

Marcel Versiani advogado militante em Brasília há 25 anos. Foi conselheiro da OAB/DF e professor do núcleo de práticas jurídicas do Ceub

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As atuais operações deflagradas pela Polícia Federal têm se mostrado terreno fértil para especulações mais amplas sobre os limites e desafios do direito penal e do processo penal contemporâneos, especialmente diante da incorporação de novas técnicas investigativas que, como todo fenômeno jurídico, precisam ser constantemente revisitadas à luz das transformações sociais e tecnológicas. 

O caso específico que motivou esta reflexão foi o destaque conferido a reportagens veiculadas a respeito do CEO do Banco Master, segundo as quais ele teria em sua agenda de contatos registros de variadas autoridades, dado que passou a ser publicamente sugerido como elemento dotado de relevância jurídica, ainda que desprovido, em si, de significado penal objetivo.

A agenda, antes instrumento de organização da vida cotidiana, passou a ser tratada como fato penal importante. Embora sedutora em tempos outros, quando prevalecia a espetacularização, essa racionalidade confunde deliberadamente dado social banal com fato juridicamente relevante, promovendo uma periclitante inflação do que é definido como indício penal.

É preciso, desde logo, restabelecer distinções elementares que sustentam processos penais democráticos: mera suspeita não se confunde com indício, indício não se confunde com prova, e fato corriqueiro não se transmuta em elemento incriminador por simples contiguidade narrativa. 

Constar em uma agenda telefônica não traduz conduta, não revela intenção, não indica vantagem e não projeta, isoladamente, bom que se diga, qualquer nexo causal com práticas ilícitas. Converter registros organizacionais da vida contemporânea em sinais de culpa representa não apenas um erro técnico, mas uma afronta direta ao princípio da intervenção mínima e à própria racionalidade probatória que deve conter o poder punitivo do Estado.

Nos tempos atuais, se revela impossível qualquer cidadão exercer controle efetivo sobre o fato de seu número de telefone constar em agendas alheias, assim como garantir plena segurança ou precisão quanto aos nomes e contatos armazenados na própria agenda. A dinâmica das tecnologias digitais, marcada por sincronizações automáticas, importação de dados, compartilhamento de contatos por aplicativos de mensagens, leitura de QR Codes e integração entre plataformas, dissocia o registro do contato de qualquer manifestação consciente de vontade ou de vínculo material relevante. Nesse contexto, a agenda deixa de ser expressão de escolha pessoal para se tornar mero repositório funcional de dados circulantes, cuja existência, por si só, não traduz relação, proximidade ou significado jurídico penalmente aferível.

 Luigi Ferrajoli, em Direito e razão, pontua que a "certeza do direito penal máximo de que nenhum culpado fique impune se baseia, ao contrário, no critério oposto, mas igualmente subjetivo, do in dúbio contra reum. Indica uma aspiração autoritária" e que "a ideia  corrente de que o processo penal deve conseguir golpear todos os culpados é fruto de uma ilusão totalitária". A partir dessa lógica obsessiva, o processo penal corre o risco de adotar elementos frágeis, como o "constar na agenda", como indício. Nesse ambiente cognitivo inflacionado, informações neutras são valoradas, em nome de um punitivismo arriscado.

Nesse cenário, torna relevante intuir que a agenda deixou de ser exceção para se consolidar como verdadeira regra social, inerente às formas contemporâneas de convivência, trabalho e organização da vida. Anotar contatos, compartilhar números, encaminhar mensagens em datas marcantes, importar dados e manter registros mínimos de comunicação não constituem escolhas dotadas de significado jurídico autônomo, mas práticas normalizadas e socialmente esperadas, impostas pela própria dinâmica das relações institucionais. 

Quando o direito penal passa a enxergar a normalidade social como potencial indício de culpa, deixa de operar como ultima ratio e se aproxima perigosamente de um modelo de vigilância incompatível com os pressupostos da democracia.

 


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Por Opinião
postado em 24/12/2025 06:00
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