ARTIGO

Em defesa da revisão da Lei da Anistia

Em reunião com o ministro Flávio Dino, organizações defenderam que a Lei da Anistia não se aplica a crimes permanentes e crimes contra a humanidade

Representantes do governo, familiares de desaparecidos pela ditadura e dirigentes de movimentos dos direitos humanos participaram de audiência sobre políticas de memória e justiça por atos do regime de 64 -  (crédito: Evandro Éboli/CB/D.A Press)
Representantes do governo, familiares de desaparecidos pela ditadura e dirigentes de movimentos dos direitos humanos participaram de audiência sobre políticas de memória e justiça por atos do regime de 64 - (crédito: Evandro Éboli/CB/D.A Press)

» ALINE MIKLOS: Diretora de Advocacy no Instituto Vladimir Herzog (IVH), PHD em direito e ciência política

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O ano de 2025 está terminando com um Congresso extremamente agitado. Pela primeira vez, militares que atentaram contra o Estado Democrático foram presos, assim como o ex-presidente Jair Bolsonaro. Posteriormente, observou-se uma intensa movimentação no Congresso para a aprovação acelerada de projetos de lei, processo no qual direitos fundamentais foram utilizados como objeto de negociação de interesses políticos. 

Até agora, o placar está da seguinte forma: 29 réus (civis e militares) condenados; Eduardo Bolsonaro e Carla Zambelli cassados; PL da Dosimetria aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado; e, nesne combo, o Projeto de Lei do Marco Temporal foi colocado em votação poucos dias antes de encerrar o ano. É evidente que tudo isso tem relação com o julgamento da tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023. Porém, o que isso tem a ver com a impunidade dos crimes cometidos durante a ditadura militar? E por que esse debate é tão atual?

Esse foi o tema de discussão da audiência conjunta que o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), realizou, em 18 de dezembro, com diferentes organizações da sociedade civil que têm trajetória reconhecida na luta pela democracia e pelo Estado de Direito: o Instituto Vladimir Herzog (IVH), a Comissão Arns, a Conectas, a Coalizão Brasil e a Associação Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). 

As entidades solicitaram a audiência a fim de pleitear o julgamento urgente do ARE 1501674, que requer a condenação de dois militares por homicídio qualificado e ocultação de cadáver de vítimas da Guerrilha do Araguaia, suscitando a discussão sobre a aplicação da Lei de Anistia e a responsabilização penal de agentes estatais por crimes contra a humanidade cometidos no período ditatorial. A urgência justifica-se tanto pelo reconhecimento da repercussão geral do recurso quanto pela idade avançada dos réus, fator que compromete progressivamente a efetividade da justiça de transição, como aponta o relatório "Responsabilização penal de agentes da ditadura militar: análise de ações penais propostas pelo Ministério Público Federal", recém-lançado pela Conectas Direitos Humanos em parceria com a Clínica de Direitos Humanos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Durante o evento, as organizações defenderam que a Lei da Anistia não se aplica a crimes permanentes e crimes contra a humanidade; argumentaram sobre a imprescritibilidade dos crimes cometidos durante a ditadura militar e  ressaltaram as violações ao direito à memória e à verdade no Brasil. A Apib, durante a audiência, estabeleceu correlação entre o PL do Marco Temporal e as remoções forçadas de povos indígenas ocorridas durante a ditadura militar, defendendo a caracterização dessas violações como crimes permanentes. Ressaltou, ainda, a importância da criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade.

O Instituto Vladimir Herzog, a Comissão Arns e a Coalizão Brasil também ressaltaram o impacto do não cumprimento das recomendações da Comissão Nacional da Verdade na atualidade. Como aponta o relatório recém-publicado pelo IVH "Fortalecimento da democracia: monitoramento das recomendações da Comissão Nacional da Verdade", somente três das 49 recomendações foram cumpridas integralmente. Cabe ressaltar que o propósito dessas recomendações consiste em assegurar o direito à memória e à verdade, prevenir a repetição de graves violações e interromper a perpetuação de práticas autoritárias que persistem no contexto democrático brasileiro.

Essa continuidade manifesta-se no elevado índice de execuções extrajudiciais, nos desaparecimentos forçados, na prática sistemática de tortura em unidades prisionais e em territórios periféricos, nos chamados "autos de resistência" e em inúmeras outras situações nas quais o Estado viola sistematicamente os direitos humanos. Nesse cenário, populações racializadas e periféricas configuram as principais vítimas dessa violência.

Nesse sentido, a judicialização de crimes cometidos durante a Guerrilha do Araguaia, como o contemplado pelo ARE 1501674, transcende a dimensão meramente retrospectiva da justiça de transição. Configura-se, antes, como condição estruturante para a ruptura do padrão histórico de violações e para a efetiva consolidação do Estado Democrático de Direito no Brasil. Ademais, a revisão da Lei de Anistia constitui medida fundamental para reafirmar o compromisso do Estado brasileiro com os direitos humanos e fortalecer as instituições democráticas. 

 


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Por Opinião
postado em 30/12/2025 06:01
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