CPI da Covid

Infectologista Luana Araújo explica ineficácia da cloroquina em CPI

Questionada por senadores governistas, a médica explicou o tratamento contra covid em quadros mais graves da doença e rebateu a insistência do governo no uso da cloroquina no combate à pandemia

Luiz Calcagno
postado em 02/06/2021 16:02
 (crédito: Jefferson Rudy/Agência Senado)
(crédito: Jefferson Rudy/Agência Senado)

A infectologista Luana Araújo, que atuou por 10 dias como secretária extraordinária de enfrentamento à covid-19 do Ministério da Saúde, deu uma aula sobre a ineficácia da cloroquina no combate ao coronavírus, durante a sessão da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da covid-19, nesta quarta-feira (2/6). A especialista voltou ao tema diversas vezes em pontos diferentes do depoimento, mas foi mais fundo quando questionada pela base do governo, que precisa defender no colegiado o comportamento muitas vezes negacionista do presidente da República.

Questionada pelo senador Marcos Rogério (DEM-RO) sobre a alternativa ao medicamento, ela destacou que a ciência ainda busca um fármaco capaz de tratar a covid na fase inicial, mas que o tratamento precoce da doença deve ser feito com vacinação, isolamento social e higienização das mãos. No caso da vacinação, a CPI já apurou que o governo Bolsonaro teria negado milhões de doses e que o Brasil poderia ter sido o segundo país no mundo a iniciar o processo de imunização da população.

A médica começou respondendo ao senador e líder do DEM sobre a importância de se combater a pandemia na atenção primária. “Defendi a necessidade de não se ver saúde somente como hospital e remédio. E vossa senhoria fez a mesma afirmação referindo-se a hospitais e médicos”, lembrou o parlamentar. “Eu me referi à saúde pública como uma área em que as pessoas têm uma visão muito pequena relacionada normalmente a atenção terciária, hospitais médicos e afins, quando é muito maior que isso. Aborda os determinantes sociais de doença, condições do paciente, nível socioeconômico, educação, se tem acesso à infraestrutura de saúde”, explicou Luana.

Ela destacou que há “uma gama de circunstâncias que envolvem a saúde pública muito maiores que hospitais e médicos”. “Isso, quando a gente fala de uma pandemia e uma doença sem tratamento farmacológico efetivo, precisa entender como agir nos outros determinantes. E a parte de educação, comunicação, esclarecimento, é fundamental. Por isso, a gente deveria usar essa outra parte”, afirmou.

O senador questionou, então, sobre a profilaxia e o tratamento precoce. “Quando a gente fala de profilaxia, é impedir que a pessoa adoeça, ou diminuir a chance ou o risco de a pessoa adoecer. Hoje, restringindo à pandemia da covid-19, falamos da intervenção vacinal e estratégias não farmacológicas, como uso de máscara, higiene de mãos e distanciamento social. Com relação a intervenção precoce não tem que ser terapêutica”, explicou. “Significa uma intervenção para diminuir o risco de agravamento ou cessar a cadeia de contaminação”, detalhou a médica.

De acordo com a especialista, isso torna o diagnóstico precoce fundamental, com exames mais ágeis que o chamado PCR. Segundo ela, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, tem um projeto de testagem mais moderno. O senador lembrou que não havia vacina no início da pandemia no Brasil. A médica concordou, e acrescentou que, por outro lado, o distanciamento, o uso de máscaras e a higienização das mãos eram medidas de prevenção claras desde o começo.

“A pandemia é dinâmica, o senhor tem razão. O que foi defendido no começo podia ter alguma lógica, e me refiro aos fármacos citados (cloroquina). Principalmente no que a gente chama de uso compassivo. Meu paciente estava morrendo. Existia plausabilidade teórica para fazer alguma coisa? Existia, embora bastante frágil. Já era frágil no começo”, destacou. Segundo Luana, as pesquisas de estudo antiviral in vitro quase nunca refletem os mesmos resultados no uso dessas drogas em seres humanos. A média de sucesso é de menos de 10%.

“A frustração é muito grande. Temos uma esperança que nem sempre, ou quase nunca, se reflete no organismo humano. A hidroxicloroquina tem vários mecanismos de ação. Um deles é que ela altera o nível de acidez dentro do parasita da malária. É uma ação direta. Mata aquele bicho. Tem outra ação de modulação do sistema imunológico, que precisa de tempo para agir. Por isso, usamos a longo prazo em doença reumatológica. Nenhuma dessas circunstâncias foi eficaz na covid. Existem medicações antivirais para HIV que funcionaram in vitro para covid e não funcionaram no organismo humano”, apontou.

A especialista deu exemplo de outras formas de matar o vírus. “Se eu colocar a placa no microondas, o vírus vai morrer. Nem por isso, vou colocar o paciente no forno duas vezes por dia. Essa diferença tem que ficar clara. Não é que não queiram que as pessoas tenham acesso a aquilo que funcionaria. Pelo contrário. A vida seria mais fácil, mais feliz. Perdi amigos. Um colega de plantão da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) que era um gênio, e que morreu salvando a vida das pessoas. Se houvesse oportunidade para depositar a confiança e a vida das pessoas nela, a gente teria usado. Infelizmente, não tem”, destacou.

Atenção primária

O senador questionou sobre a falta de infectologistas no país, cerca de 3,7 mil, em relação à população ou o número de municípios, maior que 5,5 mil. A médica concordou que essa falta traz dificuldades no combate à pandemia, mas lembrou, também, que a informação científica está à disposição. “É preciso entender que o domínio de informação científica não deve ser exclusiva do infectologista. Não é um conhecimento hermético, que exige em detalhes que a pessoa seja um infectologista”, disse.

Para Luana, é preciso informar os profissionais da atenção primária da saúde para aliviar a carga sobre hospitais. Ela lembrou que há, no setor, um uso indiscriminado de antibióticos que trazem outras implicações, como o surgimento de bactérias resistentes a esses medicamentos. “Temos que enxergar a infectologia não como uma questão terciária de alta complexidade somente, mas que precisa estar em todo o contexto de atenção da saúde pública. Se fomentamos uma educação em infectologia na atenção primária, evitamos essa dificuldade para todo o sistema. Aliviamos o peso sobre os hospitais. Na pandemia, isso precisa ser feito. É preciso mudar esse eixo de resposta para que o sistema tenha alívio”, avisou.

Tratamento

Novamente, o tema voltou ao tratamento de pacientes com covid-19 com o uso de medicamentos. O senador Marcos Rogério perguntou o que a cientista considerava como ideal, e ela lembrou que isso deve ser apontado por evidências científicas. “Não sou eu que identifico como ideal, mas as evidências científicas acumuladas no mundo inteiro que, pela primeira vez, trabalham com o mesmo inimigo ao mesmo tempo”, lembrou.

Ela destacou que já existem medicamentos usados no tratamento da doença, mas nos quadros que evoluíram para a internação. “Sabemos que o uso de corticoide em um momento específico, quando ele precisa de nebulização e oxigênio suplementar, o corticoide muda a história da doença e diminui o risco de mortalidade. O suporte ao paciente grave também mudou a história da mortalidade. No começo da pandemia, as pessoas iam para o CTI e morriam com a maior facilidade. Conseguimos diminuir a mortalidade da pandemia ao aprender a lidar, no ambiente de medicina intensiva, melhor com o suporte aos pacientes”, disse.

Ela explicou que o corticoide não age na carga viral do paciente. “O corticoide tem um momento específico. O problema dele não é a carga viral. É uma ação anti-inflamatória. E uma das razões de o paciente desenvolver quadro grave é que ele faz um quadro inflamatório gravíssimo. Dispara mecanismos no organismo, entre eles, de criação de trombos, rolhas nos vasos sanguíneos que causa diversos problemas, desde gangrenas a trombose. Na hora em que a gente sabe que o corticoide faz menos mal e um pouco mais de bem, o risco-benefício é importante, e ocorre na fase da internação e uso de oxigênio suplementar, a gente reduz a inflamação do paciente e diminuir o risco de mortalidade. Mas, se utilizado precocemente, tem efeito ruim. Pode levar a queda de resposta imunológica. Se der (o medicamento) de cara, a gente impede que o organismo use as ferramentas para combater a doença”, detalhou a especialista.

"Vamos ver se funciona. Não funcionou"

Marcos Rogério insistiu em protocolo para a fase inicial da doença. Luana Araújo explicou que não existem medicamentos para serem usados na fase inicial da doença. “Não temos nenhuma ferramenta farmacológica que possa ser usada de forma inicial que impeça a progressão da doença. O que a gente faz? A gente identifica com precocidade. Trata as eventuais doenças, comorbidades que fragilizam o sistema imunológico do paciente. Quanto mais inteiro ele estiver, melhor o sistema dele vai responder”, respondeu.

A especialista ressaltou que “o mundo inteiro pesquisa inúmeros fármacos para lidar com a questão que está colocando”. “O primeiro passo que a gente faz é testar o que já existe. A cloroquina já está aí, é barata, vamos ver se funciona. Não funcionou. Passa para outra. Não funcionou, passa para outra”, disse. “A despeito de qualquer intervenção, em 80% dos casos, ela vai evoluir bem. São os 20% que precisamos prioritariamente atender. Desses, 5% evoluem de forma grave. E no Brasil, hoje, por dificuldade de sistema de saúde, temos bolsões com mortalidade extremamente alta por falta de treinamento. Temos poucos intensivistas. É preciso uma equalização da nossa resposta, que ainda é precária, mas muito melhor que no começo”, destacou.

 

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