NAS ENTRELINHAS

Análise: Nunca os conflitos do Cáucaso estiveram tão perto de nós

Estados Unidos acusam a Rússia de preparar uma invasão da Ucrânia, enquanto Putin ameaça instalar bases militares na Nicarágua e na Venezuela. E nós com isso?

Luiz Carlos Azedo
postado em 16/01/2022 03:00 / atualizado em 16/01/2022 06:53
 (crédito: Caio Gomez)
(crédito: Caio Gomez)

O escritor Nikolai Vassílievitch Gogol (1809-1852) é considerado um dos pais da literatura russa. Segundo Fiódor Dostoiévski, autor de Crime e Castigo, todos os grandes autores russos que conhecemos saíram do conto O capote, de Gogol, a história tragicômica de Akaki Akakiévitch, um funcionário público na Rússia czarista, cuja maior ambição era comprar um capote novo: "Não, é melhor não dizer seu nome. Ninguém é mais suscetível do que funcionários, empregados de repartições e gente da esfera pública. Nos dias que correm, todo sujeito acredita que, se nós atingimos a sua pessoa, toda a sociedade foi ofendida". A novela mostra a frieza e a futilidade da aristocracia do Estado tzarista, em São Petersburgo.

Notável contista, os romances mais famosos de Gogol são Tarás Bulba (1834) e Almas Mortas (1842). Maria, um dos seus contos, descreve o drama da filha de um chefe cossaco aliado do Pedro, o Grande, e casada com um dos generais de Carlos XII da Suécia. A filha presencia o marido matar seu pai num duelo e fugir com o exército inimigo. A jovem enlouquece. É uma alusão à fuga de Ivan Mazepa, um general cossaco do Exército sueco. E uma alegoria da histórica divisão da Ucrânia.

Após derrotar a Saxônia, a Dinamarca e a Polônia, aliados de Pedro, o rei Carlos XII da Suécia tentara pôr fim à guerra invadindo a Rússia, em 1708. Em abril de 1709, Carlos XII, com o apoio do líder cossaco Ivan Mazepa, atacou o forte de Poltava no Hetmanato Cossaco. Os suecos atacaram o campo entrincheirado dos russos, que era defendido por 42 mil soldados. A vitória russa obrigou Carlos e Ivan Mazepa a fugirem para o Império Otomano.

Gogol nasceu na pequena aldeia de Sorótchintsi, na província de Poltava, na Ucrânia central, cuja capital, hoje com cerca de 280 mil habitantes, foi construída por Pedro, O Grande, como uma pequena réplica de São Petersburgo, para comemorar a Batalha de Poltava, que lhe garantiu a vitória contra os suecos. Do século XIV a 1569, a região foi parte da Lituânia; depois, da Polônia. Em 1482, foi invadida pelos tártaros da Crimeia. De 1654 a 1667, pertenceu ao Império Russo. De 1917 a 1919, foi um campo de batalha da Guerra Civil. Os bolcheviques haviam tomado o poder, mas as tropas brancas do general Anton Denikin controlavam a Ucrânia, com apoio dos cossacos da região caucasiana de Kuban. Denekin foi derrotado pelo Exército vermelho.

Um tratado de paz com a Polônia encerrou a Guerra Civil. A porção ocidental foi incorporada à Polônia, a oriental formou a República Ucraniana, integrada à União Soviética em dezembro de 1922. Durante a Segunda Guerra Mundial, nacionalistas ucranianos lutaram contra nazistas e comunistas, indistintamente, ou colaboravam com um dos lados. Em 1941, o Exército alemão invadiu a Ucrânia. No cerco de Kiev, em cujo principado nasceu a Rússia, houve feroz resistência do Exército Vermelho e da população local. Foram capturados 660 000 soldados soviéticos, entre cinco e oito milhões civis morreram, sendo meio milhão de judeus. De onze milhões de soldados soviéticos mortos em batalha, um-quarto era ucraniano.

Militarização

Desde que assumiu o poder, Vladimir Putin tenta manter a Ucrânia como aliada da Rússia, não aceita que o país ingresse no Tratado do Atlântico Norte (Otan), a grande aliança militar do Ocidente, liderada pelos Estados Unidos. Entretanto, desde a chamada Revolução Laranja (2004), seus aliados ucranianos sofreram sucessivas derrotas eleitorais. Em resposta, Putin apoia movimentos separatistas em regiões onde a população é russófila, como Crimeia e Sebastopol, que declaram independência e, em 2014, assinaram um tratado de adesão à Federação Russa, apesar da oposição da ONU.

Nas regiões leste e sul da Ucrânia, em Donetsk e Lugansk, milicias locais ocuparam prédios do governo e delegacias policiais e iniciaram uma guerra civil. Um plebiscito local, não reconhecido internacionalmente, aprovou a independência da região de Donbass, a segunda mais densamente povoada da Ucrânia, superada apenas pela capital Kiev. Reservas de ferro e carvão mineral cobrem cerca de 23.300km² a sul da bacia do rio Donets; é a maior região produtora de ferro e aço da Ucrânia e abriga um dos principais complexos de indústria pesada do mundo.

E nós com isso? Os Estados Unidos acusam a Rússia de preparar uma invasão da Ucrânia, enquanto Putin ameaça instalar bases militares na Nicarágua e na Venezuela, caso o país do Cáucaso realmente ingresse na Otan. Se isso ocorrer, o assunto certamente será um dos temas da campanha eleitoral, porque o presidente Jair Bolsonaro é aliado do atual governo ucraniano e será instado a se posicionar por Joe Biden, o presidente dos EUA, enquanto o ex-presidente Lula não esconde seu apoio político a Nicolas Maduro, na Venezuela, e Daniel Ortega, na Nicarágua. É um assunto cabeludo, que pode mudar muita coisa na geopolítica regional, na qual Bolsonaro anda muito isolado.

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