No primeiro discurso como presidente, ontem, no Plenário da Câmara, Luiz Inácio Lula da Silva fez questão de marcar, de forma contundente, a diferença entre o que sua vitória eleitoral sobre Jair Bolsonaro representou. Mais do que uma disputa entre "candidatos com programas distintos", foi a vitória da democracia sobre um projeto autoritário de poder pautado pela desconstrução das instituições.
"De um lado, o projeto de reconstrução do país, com ampla participação popular. De outro lado, um projeto de destruição do país ancorado no poder econômico e em uma indústria de mentiras e calúnias jamais vista ao longo de nossa história", destacou, antes de saudar a democracia brasileira. "Sob os ventos da redemocratização, dizíamos: ditadura nunca mais! Hoje, depois do terrível desafio que superamos, devemos dizer: democracia para sempre!", frisou.
Lula lembrou sua primeira chegada ao Palácio do Planalto, em janeiro de 2003, classificando-a como a "inédita eleição de um representante da classe trabalhadora para presidir os destinos do país". À época, ressaltou que também sofreu resistência de setores da sociedade, que temiam a instauração de uma agenda de esquerda no governo, devido a ter sido líder sindical e ter estado à frente de frente de greves, no final da década de 1970. "Em oito anos de governo, deixamos claro que os temores eram infundados. Do contrário, não estaríamos aqui novamente", destacou.
O presidente creditou a vitória à "consciência política da sociedade brasileira" e da frente ampla que se formou para apoiá-lo na eleição. Além disso, fez severas críticas ao governo Bolsonaro: denunciou o uso de recursos públicos com objetivos eleitorais, a construção de "um discurso de ódio" em nome de um projeto autoritário, o desmonte de políticas públicas e o constrangimento de eleitores.
Ele também elogiou a Justiça eleitoral e o sistema eletrônico de votações. Destacou "a coragem do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que enfrentaram toda sorte de ofensas, ameaças e agressões para fazer valer a soberania do voto popular". "Os inimigos da democracia lançaram dúvidas sobre as urnas eletrônicas, cuja confiabilidade é reconhecida em todo o mundo. Ameaçaram as instituições. Criaram obstáculos de última hora para que eleitores fossem impedidos de chegar a seus locais de votação. Tentaram comprar o voto dos eleitores, com falsas promessas e dinheiro farto, desviado do orçamento público. Intimidaram os mais vulneráveis com ameaças de suspensão de benefícios, e os trabalhadores com o risco de demissão sumária, caso contrariassem os interesses de seus empregadores", ressaltou.
Ao celebrar o que chamou de vitória da democracia, Lula citou a proliferação de notícias falsas que contaminaram o debate público. "A nação foi envenenada com mentiras produzidas no submundo das redes sociais. Eles semearam a mentira e o ódio, e o país colheu uma violência política que só se viu nas páginas mais tristes da nossa história. E no entanto, a democracia venceu", afirmou.
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Reconstrução
Para Lula, seu governo servirá para "reerguer" o "grande edifício de direitos, de soberania e desenvolvimento que esta nação levantou", que "vinha sendo sistematicamente demolido nos anos recentes". "É sobre estas terríveis ruínas que assumo o compromisso de, junto com o povo brasileiro, reconstruir o país e fazer novamente um Brasil de todos e para todos", observou, apontando a falta de recursos nos orçamentos de praticamente todos os setores do Estado, conforme levantaram os grupos de trabalho da transição.
No discurso, o presidente assegurou que não haverá revanchismo contra personagens do governo anterior, porém deixou claro que quem for acusado de crimes vai responder diante da Justiça — seguindo, como destacou o presidente, o devido processo legal e com acesso à ampla defesa. "Não carregamos nenhum ânimo de revanche contra os que tentaram subjugar a Nação a seus desígnios pessoais e ideológicos, mas vamos garantir o primado da lei. Quem errou responderá por seus erros, com direito amplo de defesa, dentro do devido processo legal", observou. Horas depois, ao final do discurso no parlatório do Palácio do Planalto, a plateia puxou o coro "anistia não".
O tom em relação ao governo Bolsonaro foi duro, sobretudo quando mostrou que o desmonte de políticas públicas e o negacionismo foi responsável pelas quase 700 mil mortes causadas pela covid-19. "O período que se encerra foi marcado por uma das maiores tragédias da história: a pandemia de covid-19. Em nenhum outro país a quantidade de vítimas fatais foi tão alta proporcionalmente à população quanto no Brasil, um dos países mais preparados para enfrentar emergências sanitárias, graças à competência do nosso Sistema Único de Saúde. Este paradoxo só se explica pela atitude criminosa de um governo negacionista, obscurantista e insensível à vida. As responsabilidades por este genocídio hão de ser apuradas e não devem ficar impunes", avisou.
Mais uma vez, Lula criticou o teto de gastos — para o qual deverá haver algum dispositivo que o substitua e que sinalize responsabilidade fiscal. "O SUS é provavelmente a mais democrática das instituições criadas pela Constituição de 1988. Certamente por isso foi a mais perseguida desde então, e foi, também, a mais prejudicada por uma estupidez chamada Teto de Gastos, que haveremos de revogar", atacou.
Lira e Aras vaiados
A presença de aliados de Bolsonaro na sessão solene não agradou os apoiadores que assistiram ao discurso da Praça dos Três Poderes. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e o procurador-geral da República, Augusto Aras, foram alvo de fortes vaias por parte do público, com cerca de 40 mil pessoas. As vaias ocorreram assim que as imagens de ambos foram transmitidas no telão. Tanto Aras quanto Lira foram homens-forte do ex-presidente da República durante o seu mandato.
O presidente também mandou uma mensagem ao mundo, ao dizer que combaterá o avanço de movimentos autoritários em vários países. Lula defendeu a articulação de "uma governança global" para combater a "máquina de ataques à democracia", que "não tem pátria nem fronteiras", por meio de "tecnologias avançadas e de uma legislação internacional mais dura e eficiente". Para ele, isso não significa atentar contra a liberdade de expressão, mas é uma forma de defender o "livre acesso à informação de qualidade, sem mentiras e manipulações que levam ao ódio e à violência política".
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