ENTREVISTA

Mandetta sobre covid-19 no Brasil: 'Poderíamos ter evitado metade dos mortos'

Demitido por Bolsonaro, ex-ministro da Saúde comentou decisão da OMS de decretar o fim da emergência mundial para COVID

Bertha Maakaroun - Estado de Minas
postado em 05/05/2023 21:50 / atualizado em 05/05/2023 21:52
 (crédito: Jefferson Rudy/Agência Senado)
(crédito: Jefferson Rudy/Agência Senado)

As mortes de 350 mil pessoas por Covid-19 poderiam ter sido evitadas no Brasil se o governo Jair Bolsonaro não tivesse politizado o enfrentamento da doença, difundido o caos informacional e o negacionismo, além de ter desmantelado a coordenação do combate pelo Ministério da Saúde. Ao final da pandemia, com mais de 700 mil mortes, o Brasil responde por 10% dos óbitos registrados no mundo.

A avaliação é de Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde, demitido pelo então presidente em 16 de abril de 2020, porque se recusou a aceitar a ideologia negacionista copiada por Jair Bolsonaro de Donald Trump, então presidente dos Estados Unidos. "Poderíamos ter evitado metade dos mortos. Se tivesse feito a campanha direitinho, falando todos a mesma língua, diminuindo a velocidade de transmissão, teríamos tido um resultado muito melhor", disse.

Nesta sexta-feira (5/5), a Organização Mundial da Saúde (OMS) suspendeu o nível máximo de alerta sobre a pandemia de covid-19, que deixou "pelo menos 20 milhões" de mortos no mundo. A OMS considera que a doença está suficientemente controlada.

Olhando retrospectivamente, Mandetta avalia que Bolsonaro fez tudo o que um chefe de Estado não deveria fazer naquele cenário de pandemia, se quisesse salvar vidas. "Quando iniciamos o enfrentamento, tivemos alguns princípios: proteger a vida incondicionalmente, manter a coordenação do enfrentamento no Ministério da Saúde, usando o SUS como meio e a ciência para decidir. Eram os pilares de nossa estratégia" , afirma Mandetta. "Mas a ideia dele era retirar o Ministério da Saúde do enfrentamento, deixando isso a cargo de governadores e prefeitos, ficando o presidente como crítico e oposição, transformando a vida de governadores e prefeitos num inferno", avalia o ex-ministro.

"As pessoas acham que ele é louco, mas foi decisão política, com começo, meio e fim. Foi decisão deliberada e consciente, porque informei por escrito e avisei qual era a projeção de mortes nesse cenário de confusão informacional e de falta de coordenação de Brasília, caso fosse adotada a tese da imunidade de rebanho, dentro da máxima do (então ministro da Economia) Paulo Guedes de que entre economia e saúde, ficaria com a economia", revela Mandetta.

A primeira providência de Jair Bolsonaro, depois da exoneração de Mandetta - e na sequência, a saída de seu sucessor Nelson Teich - foi desmantelar a estrutura unificada no Ministério da Saúde sob o Sistema Único de Saúde (SUS), com um grupo técnico de pesquisadores e profissionais das maiores instituições brasileiras, em contato permanente com os principais centros de pesquisa do mundo, para o embasamento do processo decisório.

Também a estrutura de comunicação permanente com a sociedade, para esclarecimento devido, evitando o charlatanismo nas mídias digitais, foi interrompido. A imprensa brasileira precisou se organizar em consórcio para acompanhar e divulgar as estatísticas da Covid-19, o que era papel do Ministério da Saúde.

"Fizeram uma intervenção militar no Ministério da Saúde, com o que tem de mais desqualificado no Exército, o pessoal de logística. Se o Exército tem generais da área da saúde, por que não colocaram um deles? Porque queriam uma pessoa servil, que sem compromisso com o combate à Covid-19", afirma o ex-ministro. "Foi uma decisão política que levou muitas pessoas à morte. E não foi decisão política tomada sem ter sido avisado. Fizemos três cenários, e o cenário mais pessimista que projetamos, foi exatamente aquele que Bolsonaro escolheu: o caos informacional e a desarticulação do sistema de saúde. Bolsonaro foi para esse cenário de forma completamente consciente. E eu mandei por escrito", diz Mandetta.

Sem consenso em Brasília, os entes federados já não trabalhavam juntos. Governadores e prefeitos bolsonaristas adotavam a narrativa negacionista em confronto com governadores e prefeitos que seguiam as orientações científicas.

O grau de politização no trato à doença transbordou para diversas instituições brasileiras, inclusive o Conselho Federal de Medicina, que, em tese, foi criado para zelar pela boa prática médica. "Chegamos ao fundo do poço. O Conselho Federal de Medicina valida essa narrativa negacionista e cria dois tipos de médicos na ponta: aquele que dava cloroquina e aquele que não dava. Politizaram a própria prática médica", assinala Mandetta.

Depois de ignorar as oportunidades de adquirir de laboratórios internacionais as vacinas mais rapidamente, também a imunização foi politizada e Jair Bolsonaro iniciou a pregação contra as vacinas. "Politizaram a vacina, porque acharam que haveria imunidade de rebanho. Não adotaram a minha recomendação, que era de comprar a vacina cedo. Eu assinei e induzi a Fiocruz ao acordo de cooperação com a Oxford e disse vamos apoiar o Butantã com a China. Senão não teríamos tido vacina", relembra Mandetta, registrando que na segunda onda da Covid-19, morreram, entre 31 de dezembro e 31 de julho, quase 380 mil pessoas.

"Foi um número absurdo de óbitos no primeiro semestre de 2021", aponta ele. "E foi aquela barbaridade, aquela vergonha de Manaus. E o que fazem? Vão para Manaus e mandaram grupos de pacientes para todas as capitais brasileiras. Os pacientes com a cepa delta", diz ele, explicando que uma mudinha da cepa foi colocada em cada lugar de concentração humana no Brasil. "Foi o nosso desespero. Curitiba, São Paulo ficaram quase sem oxigênio. Não existe país no mundo em condições de produzir oxigênio para o país todo com consumo 38 vezes maior do que a média. Foi nosso maior pesadelo. Chegaram a morrer 4.500 pessoas em um único dia", aponta.

Erros no plano internacional

No plano internacional, também houve erros, aponta Mandetta. A começar pela falta de transparência e de informações no momento em que a doença foi detectada em Wuhan, na China. "A Organização Mundial de Saúde (OMS) fez algo atípico: considerou uma emergência para a cidade de Wuhan e um alerta internacional. Mas o mundo estava sob a indefinição: não sabia se estava diante de um vírus que não iria sair daquela região, não conhecia a velocidade de propagação os números de contágio", diz Mandetta. Quando a Itália entrou em colapso, a China parou de exportar e começaram a faltar insumos como máscaras, agulha e outros, em todo o mundo. "Foi erro mundial concentrar na economia de escala a compra de elementos essenciais de um único país", diz Mandetta.

Sistematização de erros e acertos

Para Mandetta, o momento agora é de o Ministério da Saúde promover congressos e reuniões de trabalho para sistematizar a experiência, identificando erros e acertos no enfrentamento da Covid-19, de modo a deixar a contribuição para as gerações futuras no enfrentamento das pandemias que virão. "É uma questão de tempo", diz o ex-ministro, que também aponta para o histórico precário das determinantes sociais em saúde no Brasil. "A Covid-19 foi doença infecciosa que ingressou no país pelas classes ricas, diferentemente do que normalmente acontece. Mas sabíamos que seria uma questão de tempo para alcançar as nossas fragilidades", diz Mandetta.

"Quando vem uma doença assim, ela cobra um preço enorme da falta de políticas públicas para que as pessoas tenham moradias Como vamos falar de higiene com o Rio de Janeiro, que tem 40% das pessoas em área de exclusão social absoluta, sem saneamento? E nós falando em isolamento para famílias que vivem em casas de 20m2, sem pia para lavar mão. Essa lição, as nossas determinantes sociais em saúde seguem como nosso ponto fraco", diz ele.

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