Segurança Pública

"No Rio, intervenção federal é um grande fiasco", diz especialista

Em entrevista ao Correio, o sociólogo Diogo Lyra, pesquisador na área de segurança pública, afirmou que, no Rio de Janeiro, "a polícia tem permissão do Estado para matar"

Doutor em sociologia pelo Iuperj, importante centro de pesquisa e pós-graduação do Rio de Janeiro, o pesquisador Diogo Lyra é autor do livro
Doutor em sociologia pelo Iuperj, importante centro de pesquisa e pós-graduação do Rio de Janeiro, o pesquisador Diogo Lyra é autor do livro "A República dos Meninos: juventude, tráfico e virtude" - (crédito: Redes Sociais)
postado em 09/10/2023 11:52 / atualizado em 09/10/2023 11:58

Autor do livro A República dos Meninos: juventude, tráfico e virtude, o pesquisador Diogo Lyra, doutor em sociologia pelo Iuperj, importante centro de pesquisa e pós-graduação, entende que o estado do Rio de Janeiro se distingue dos demais pela presença de milícias com uma conexão profunda com as forças de segurança e que estão imiscuídas também no Legislativo, Executivo e Judiciário.

Em entrevista ao Correio, ele afirma que só a intervenção federal, seja do Exército ou da Força Nacional, não resolve e que aquelas que ocorreram foram um "grande fiasco". No Rio, diz Lyra, a polícia tem permissão do Estado para matar.

Ele também comentou sobre o assassinato dos médicos no quiosque na Barra da Tijuca, na semana passada, "embora ainda seja cedo para analisar o episódio em si, visto que se trata de um crime cujas motivações ainda não estão claras". Segundo Lyra, o crime é "um sintoma de um contexto político bastante longevo no Rio de Janeiro, um território repartido entre diversos grupos armados e uma polícia que, muitas vezes, pouco se diferencia desses grupos e possui, inclusive, estreitas ligações com todos eles". Confira a entrevista completa a seguir:

Como se situa hoje a questão da segurança pública no Rio? No que se assemelha ao resto do país?

Falar da segurança pública no Rio de Janeiro hoje é o mesmo que falar de segurança pública no Rio há 40 anos atrás — e esse é o problema. Não há nada de novo na sucessão de tragédias cotidianas com as quais parecemos ter aprendido a conviver, senão a individualidade das vítimas em si, seus nomes e corpos. As crianças assassinadas, os trabalhadores das favelas, as vítimas ocasionais da classe média, as chacinas, as execuções de políticos, nada disso é novo, nada é desse tempo propriamente dito. Há, sim, o acúmulo histórico dessa violência e o agravamento dos seus efeitos, obviamente, mas os contextos, os autores, as vítimas, os lugares, circunstâncias, são todos reencenações de outros episódios de igual absurdo, que vão se sucedendo e se incorporando no imaginário social como a própria maneira pela qual as relações sociais se estruturam nesse estado. À luz dessas questões, o Rio de Janeiro compartilha com outras unidades federativas a ideia de que a sociedade é formada em grande parte por elementos matáveis, cuja vida não têm valor algum, nem para os policiais, nem para os promotores públicos, nem para a sociedade e muito menos para os criminosos. Contudo, a presença da milícia e suas profundas conexões não apenas com as forças de segurança, mas com o poder público mais amplo, imiscuída no Legislativo, no Executivo e no Judiciário, é um fator que distingue o Rio de Janeiro de outros estados e um alerta a essas mesmas unidades federativas, que caminham para esse contexto.

Que contribuição para o debate e busca de soluções um episódio como esse do assassinato dos médicos no quiosque traz? Que temos agora, se é que é novidade, um Tribunal do Crime? Mais um aspecto a ser enfrentado com combate às milícias?

Embora ainda seja cedo para analisar o episódio em si, visto que se trata de um crime cujas motivações ainda não estão claras, a execução dos quatro médicos em um quiosque na Barra da Tijuca deve ser compreendida como sintoma de um contexto político bastante longevo no Rio de Janeiro, um território repartido entre diversos grupos armados e uma polícia que, muitas vezes, pouco se diferencia desses grupos e possui, inclusive, estreitas ligações com todos eles. Por outro lado, é uma polícia que recebe do Estado permissão para matar, o que, ao contrário do que se pensa, adensa ainda mais essa relação. Em outras palavras, se a polícia pode matar livremente, ela também pode negociar essa vida, o que torna suas ações um elemento não de combate ao crime, mas de permanente extorsão do crime, garantindo a sua também permanente reprodução. Essas relações promíscuas com criminosos — ontem o jogo do bicho, hoje o tráfico de drogas — adquiriram maior complexidade e perigo com o advento das milícias, com as quais a polícia opera de maneira diferenciada, menos no âmbito da extorsão e mais sob a forma de associação. Como a polícia age sem absolutamente nenhum tipo de controle, suas ações estão sempre pautadas pela maximização dos lucros que tiram dessas relações e não pelo dever institucional de combatê-las. Nesse sentido, cada batalhão, cada delegacia, é uma pequena empresa, que age em prol dos interesses econômicos dos policiais e não da segurança pública propriamente dita. Não é coincidência que, no Rio de Janeiro, a polícia é o grande impulsionador da letalidade violenta, sendo responsável por aproximadamente um terço de todos os homicídios do estado.

O episódio do assassinato dos médicos joga luz novamente à possibilidade de uma nova GLO no Rio. Ajuda? Nesse gancho, até que ponto o envio da Força Nacional, como anunciado pelo governo federal, contribui?

Historicamente, as intervenções federais no Rio de Janeiro foram todas um grande fiasco e a razão para isso é bastante simples: seja o Exército, seja a Força Nacional, a ação dessas forças no estado é sempre uma repetição em grande escala do modus operandi da polícia local, se manifestando sob a forma de ocupações em favelas, operações de enfrentamento armado e nivelamento de todos os moradores dessas áreas como suspeitos, inclusive crianças. Nesse sentido, visto que o principal problema da segurança pública no Rio de Janeiro está no modus operandi de suas próprias forças policiais, o esperado é que essas intervenções sempre agravem o problema da violência, apesar da falsa sensação de segurança que suas ações midiáticas — como o desfile de tanques, soldados e aparatos militares de todo tipo — trazem à população. Uma intervenção federal que não contemple o escrutínio das relações entre as polícias e os grupos armados estará sempre fadada ao fracasso.

Que medidas e ações entende serem importantes e necessárias para se achar um caminho que reduza mais que a sensação de insegurança, a possibilidade da violência atingir de fato o cidadão?

O Rio de Janeiro jamais se livrará do presente nível de violência enquanto não houver controle externo da atividade policial, por parte do Ministério Público, além do controle político dos governadores sobre as corporações. Desde a redemocratização, o Ministério Público arquiva, em média, 98% de todos os inquéritos nos quais policiais figuram como autores — mesmo em casos onde há evidências explícitas de execução. Isso significa que, para a polícia, não há custo na produção de mortes — que são tomadas sempre como externalidades negativas de uma missão maior, “combater o crime”, relegando a proteção da vida ao segundo plano, quando, na verdade, é o princípio máximo que deveria nortear esse tipo de corporação. Por outro lado, a violência se tornou a galinha dos ovos de ouro de uma série de políticos irresponsáveis, um trampolim para todo tipo de oportunistas que utilizam a brutalidade policial como propaganda eleitoreira ao custo de centenas de vidas. No outro extremo, os governadores que tentam promover mudanças estruturais na segurança pública geralmente percebem que não têm controle nenhum sobre suas corporações e, ou acabam fechando os olhos para o problema, ou são pressionados por meio do acirramento da violência policial — como foi o caso de Brizola e as chacinas dos anos 90 — ou da ameaça de violência contra as próprias autoridades públicas, como aconteceu durante o primeiro ano de gestão Garotinho, com o professor Luiz Eduardo Soares como subsecretário de segurança, nos idos dos anos 2000.

Que papel a passagem do governo Bolsonaro tem na escalada da criminalidade? A política e o discurso pró-armamento do ex-presidente têm reflexo no aumento da violência contra as pessoas?

O governo Bolsonaro tem um papel fundamental, embora não determinante, para o aumento da violência armada, embora seus efeitos sejam diferentes no que tange aos grupos portadores dessa violência. Em primeiro lugar, temos na prática uma liberação das armas para civis, o que por si só incide no aumento de homicídios, sobretudo em questões cotidianas que, não fosse o acesso à arma, não redundariam em assassinatos. Em segundo lugar, temos a relação desses civis, que têm acesso a armas de diversos calibres, com grupos armados de diferentes modalidades, que adquirem esses armamentos com os CACs (colecionador, atirador desportivo e caçador) de uma forma muito mais simples e barata. Em terceiro, sob o governo Bolsonaro, a capacidade de vigilância e rastreamento dessas armas e munições pelas forças de segurança, em especial o Exército, foi solapada de tal maneira que praticamente não há fiscalização, aumentando ainda mais as possibilidades de sua utilização. Finalmente, o que alinhava esses diferentes grupos num mesmo grande problema é a questão ideológica, isto é, o discurso que propagada a morte como uma solução, venha ela da polícia, das forças armadas, da milícia ou do cidadão comum. A combinação desses elementos tem efeitos drásticos sentidos em absolutamente todos os estados.

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