ditadura militar

Reparação: Estado pode reconhecer culpa na morte de indígenas pela 1ª vez

Pela primeira vez, o Estado reconhecerá sua culpa na perseguição, tortura e morte de indígenas atingidos pela violência dos agentes do regime de arbítrio comandado pelos militares, a partir de 1964

Indígena Krenak sendo carregado em pau de arara por militares -  (crédito: Reprodução/Jesco Puttkamer)
Indígena Krenak sendo carregado em pau de arara por militares - (crédito: Reprodução/Jesco Puttkamer)
postado em 20/03/2024 03:55 / atualizado em 21/03/2024 13:37

Num momento de lembrança dos 60 anos da ditadura, pela primeira vez o Estado reconhecerá sua culpa na perseguição, tortura e morte de indígenas atingidos pela violência dos agentes da ditadura militar (1964-1985). O pedido de perdão inédito ocorrerá na Comissão da Anistia, em 2 de abril. Pela primeira vez, será concedida anistia de forma coletiva a um agrupamento específico, previsão que só agora foi inserida no regimento do colegiado. Antes, os julgamentos eram individuais.

Esse julgamento abrange os povos krenak, de Minas Gerais, e guarani-kaiowá, de Mato Grosso do Sul. A Comissão Nacional da Verdade levantou que cerca de 8 mil indígenas foram mortos e perseguidos pelo regime. É um número superior aos de 434 de mortos e desaparecidos urbanos, ligados a grupos de opositores do regime militar. O caso das duas etnias ainda será analisado pelos conselheiros da Comissão de Anistia, mas a aprovação é dada como certa.

"Essas reparações coletivas dos indígenas representam que, pela primeira vez, em mais de 500 anos, o Brasil vai reconhecer que perseguiu os povos indígenas e vai pedir desculpas por isso", disse ao Correio a presidente da Comissão de Anistia, Eneá de Stutz e Almeida.

Vereador do município de Resplendor (MG), Geovani Krenak (PSD) teve o avô e o pai torturados por militares. "Meu avô foi preso, torturado, exilado e morreu no exílio. Meu pai foi amarrado no rabo de um cavalo e foi arrastado até um dos quartéis. Ainda hoje sofremos muito com problemas psicológicos dentro da aldeia. Nosso povo foi proibido de falar o idioma nativo. Se fosse falado, os parentes eram presos", relata Krenak.

Geovani rekak na posse como vereador de Resplendor. "A ditadura tirou o território do nosso povo, fomos exilados. Vemos esse julgamento com muita esperança", diz a liderança indígena
Geovani rekak na posse como vereador de Resplendor. "A ditadura tirou o território do nosso povo, fomos exilados. Vemos esse julgamento com muita esperança", diz a liderança indígena (foto: Redes sociais/Reprodução)

Ao longo da ditadura, os indígenas sofreram torturas e inúmeras tentativas de desumanização, como prisões arbitrárias, trabalho análogo ao escravo e proibição de falar a língua materna. Em Minas, em 1969, foi instalado o reformatório Krenak em Resplendor — onde indígenas de 23 etnias foram presos.

A advogada indígena Maíra Pankararu é integrante da Comissão de Anistia e representa as etnias. Para ela, esse julgamento joga luz nas atrocidades cometidas pelos torturadores também contra esses povos. "As provas são abundantes e bastante claras. E já houve uma sentença judicial a favor dos krenak, em 2021. Mas a aprovação da anistia e o pedido de desculpas vai abrir novo horizonte. Além do status de anistiados, esses povos poderão recorrer ao Judiciário e reivindicar a justa demarcação", disse Maíra.

Remoção

Os guarani também foram alvo de remoção forçada articulada pelos militares. Tiveram de deixar suas terras, que não foram demarcadas até hoje. As duas ações — dos krenak e dos guarani — na comissão são de autoria de procuradores estaduais, que acompanham com proximidade essas causas.

As violências sofridas pelos povos originários vieram à tona por meio de um relatório, redigido em 1967, pelo então procurador Jader de Figueiredo Correia, do extinto Ministério do Interior. O documento, de mais de 7 mil páginas, desapareceu por quatro décadas e só foi encontrado em 2013, no Museu do Índio, no Rio de Janeiro.

As denúncias presentes no relatório foram fruto de uma expedição que percorreu mais de 16.000km, a pedido do então ministro do Interior, Albuquerque Lima, em 1967. Entre as formas de tortura, o procurador relatou "caçadas humanas" promovidas com metralhadoras e dinamites — que eram atiradas de aviões, "inoculações propositais de varíola" em povoados isolados e doações de açúcar misturado ao veneno estricnina.

O Ministério Público Federal (MPF) pontua que, em 1972, os krenak foram retirados à força de suas terras e levados para a Fazenda Guarani, em Carmésia (MG), a 343 km de distância. O objetivo do deslocamento forçado era liberar o território tradicional para fazendeiros que perderam uma ação de reintegração de posse. Esse episódio é referido pelos indígenas como de profundo sofrimento, por causa da distância do rio Doce, chamado de Watu pelos krenak e considerado sagrado.

Para Geovani Krenak, o julgamento na Comissão de Anistia é muito aguardado. "É um momento de reconhecer todas as atrocidades contra os povos originários. A ditadura tirou o território do nosso povo, fomos exilados. Vemos esse julgamento com muita esperança", explicou.

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