60 ANOS DO GOLPE MILITAR

Eneá Almeida, da Comissão de Anistia: "Não esperava de Lula uma posição negacionista"

Dirigente do colegiado que julga pedidos de reparação pela perseguição na ditadura diz que termo se aplica ao presidente por ter vetado atos e manifestações oficiais

Professora e pesquisadora Eneá de Stutz  -  (crédito: Raquel Aviani - UnB)
Professora e pesquisadora Eneá de Stutz - (crédito: Raquel Aviani - UnB)
postado em 31/03/2024 06:00

A Comissão de Anistia funciona há 22 anos e tem o papel de fazer a reparação histórica de julgar os abusos da ditadura e avaliar a concessão da condição de anistiado político e o direito à indenização. O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva pretende colocar fim ao trabalho desse colegiado, julgando, até o fim de 2026, os cerca de sete mil processos restantes. 

A presidente da comissão, a professora e pesquisadora Eneá de Stutz e Almeida, explica que um dos objetivos de encerrar os trabalhos é evitar que, na volta de um governo que tenha um entendimento de que não houve ditadura no país, o que avançou se torne retrocesso. 

Em entrevista ao Correio, Eneá Almeida criticou a postura de Lula sobre 1964 — ele vetou atos oficiais que lembrem o golpe — e afirmou que recebeu essa decisão como "verdadeiro choque". Disse não fazer sentido o presidente condenar o Holocausto, "no que está correto", e não fazer o mesmo com o golpe militar no Brasil. A seguir, os principais trechos da entrevista: 

Chegamos a 60 anos do golpe militar, e por que parece ser uma chaga que não fecha, ciclo
que não acaba?

É uma chaga que não fecha porque a gente não consegue completar a transição. E não completa a transição porque não completa os passos dessas dimensões que começaram a avançar, que são reparação, memória e verdade. Mas não avançou grande coisa na reforma das instituições, como as forças de segurança pública e as Forças Armadas. Nesse sentido, não avançamos um milímetro. Nenhuma dessas instituições foi democratizada. Os militares até hoje não reconhecem que foram protagonistas do golpe de 64, tampouco pediram perdão. E não avançamos nada na responsabilização penal dos agentes repressores e violadores dos direitos humanos. Enquanto a gente não completar essa tarefa, não vai conseguir seguir adiante e alcançar a pacificação no Brasil. 

No que o país errou e acertou nesses anos no tratamento do tema? Afinal, já temos quase 40 anos de redemocratização contra 21 anos de ditadura.

Se a gente considerar a partir da Constituição de 1988, avançou bastante, até 2016, no binômio memória e verdade e no campo das reparações. O problema é que, de 2017 para cá, a gente teve muitos retrocessos no que avançamos, esse binômio. Na Comissão de Anistia, foram muitos, mas muitos mesmo os retrocessos entre 2017 e 2022, a ponto de requerentes contarem suas histórias, apresentarem provas e ouvirem na cara deles, dos então conselheiros nesse período, em especial de 2019 a 2022, que eles eram terroristas e não tiveram mais do que mereceram. Que tinham mais que ser presos mesmo e serem banidos. "Ah, você foi preso e torturado? Bem-feito". Basicamente era o que ouviam, causando uma revitimização. Hoje, temos muito trabalho pela frente, porque a gente tem de avançar, e em algumas coisas tem que recuperar esses retrocessos.

Passamos por um governo que cultuou a ditadura, um presidente que louva torturador, uma comissão extinta (de Mortos e Desaparecidos), militares espalhados na Esplanada e uma real tentativa de golpe. Tudo isso dificulta o fechamento desse ciclo?

É um pouco o contrário. Exatamente por não se ter completado essas tarefas, como não se falar sobre isso e não termos enfrentado esse legado autoritário, e passados 60 anos do golpe, é que tivemos um governo autoritário, negacionista, que cultuou ditadura e que trouxe para funções no governo militares que não tinham habilidade e capacidade para essas funções. E o melhor exemplo foi do general Pazuello (hoje deputado), especialista em logística, que foi colocado no Ministério da Saúde e que não sabia diferença entre Amapá e Amazônia. E tivemos como resultado da gestão 700 mil mortes pela covid no Brasil. Porque a gente não fechou esse ciclo é que tivemos esse desgoverno, negacionista, até em relação ao golpe,  exaltando a tortura e esses horrores todos.   

Como recebeu essa orientação de Lula para esquecer aquele período e suspender atos oficiais críticos a 1964?

Recebi essa informação como verdadeiro choque. Estava sentada numa cadeira e quase caí. Não acreditei. Não fazia sentido nenhum para mim. Até porque, o presidente Lula tinha feito crítica ao governo de Israel e mencionou o Holocausto. Até onde eu sei, o presidente Lula não é judeu e certamente não é alemão. Ainda assim, ele sabe da importância de a gente falar e lembrar do Holocausto, que é um episódio que ocorreu há mais de 80 anos. Então, ele tem consciência e está absolutamente correto, que não podemos jamais esquecer os crimes contra a humanidade, como o Holocausto. Se ele percebe a importância disso, como não percebe a importância de lembrar crimes cometidos contra a humanidade pelo Estado brasileiro, no nosso país, 60 anos atrás? E que ocorreu 20 anos a menos do que o Holocausto. E aqui. Então, não faz sentido algum esse negacionismo. E me causou muito espanto, me deixou um tanto decepcionada. Não esperava desta gestão do governo, do presidente Lula uma posição negacionista. Negacionista, não negando a existência do golpe, não fez isso. O presidente Lula não nega o golpe de Estado, mas negou que a gente deva ou que ele se preocupe em lembrar e enfrentar as consequências do governo ditatorial, me causou estranheza e decepção. 

A Comissão de Anistia caminha para encerrar seus trabalhos até 2026. E também decidiu estabelecer um teto para as reparações. Pode comentar esses dois pontos?

Tivemos, em 2023, o ápice de uma série de atentados contra a democracia, e por muito pouco não tivemos um golpe de Estado. Vemos ainda uma absurda parcela da população persistir nessa intenção, de que troquemos a democracia por uma ditadura. Temos um clima acirrado e polarizado e uma eleição presidencial em 2026. Persistem críticas ao Judiciário, desconfiança das urnas, e esse clima traz muita insegurança. Vimos o tanto de retrocesso no governo passado. Diante desse cenário, a Comissão de Anistia fez um planejamento para não correr riscos de novo retrocesso nessa tarefa de reparação. Por isso, decidimos dar conta de julgar os cerca de sete mil processos que remanescem. Há também limitações orçamentárias, e passamos a fazer julgamentos por blocos, o que acelera o processo. Decidimos por estabelecer a prestação mensal de R$ 2 mil, que é um valor acima do salário mínimo e que permite ao anistiado receber de uma vez só todo seu retroativo (soma de valores passados). São muitas pessoas idosas, já doentes, seja por sequelas da ditadura, seja por razões naturais da vida.

 

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