ditadura

Indígenas são anistiados e, enfim, respeitados

Comissão reconhece perseguição e violências cometidas, durante a ditadura, contra os integrantes das etnias krenak e guarani-kaiowá — que foram desterrados, perseguidos e manipulados pelos militares

Eneá ajoelha-se e pede desculpas em nome do Estado a Djanira Krenak, matriarca do povo originário -  (crédito: MDHC/YouTube/Reprodução)
Eneá ajoelha-se e pede desculpas em nome do Estado a Djanira Krenak, matriarca do povo originário - (crédito: MDHC/YouTube/Reprodução)

A Comissão de Anistia aprovou, ontem, o primeiro pedido coletivo de anistia a dois povos indígenas, os krenak, de Minas Gerais, e os guarani-kaiowá, de Mato Grosso do Sul. As comunidades foram vítimas de perseguição e tortura durante a ditadura militar. Trata-se de um inédito caso de reparação a um agrupamento específico desde a alteração no regimento do colegiado, no ano passado. Até então, a comissão analisava apenas pedidos individuais.

No caso do povo krenak, o autor do pedido foi o Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG) e a aprovação foi unânime, com os votos favoráveis de todos os conselheiros da comissão. No fim, a presidente do colegiado, Eneá Stutz, pediu desculpas, em nome do Estado brasileiro, pela perseguição à etnia. Ajoelhada, fez o pedido de perdão a Djanira Krenak, matriarca do povo originário.

"Peço desculpas não apenas pelo que ocorreu durante a ditadura, mas por tudo que ocorreu nesses 524 anos", afirmou Eneá.

A decisão significa a concessão do status de anistiado político aos povos krenak e guarani-kaiowá, mas não envolve reparação econômica — concedida em casos individuais. Representantes dos krenak cobraram do governo também essa indenização.

No caso dos guarani-kaiowá, além da condição de anistiados políticos, a relatora do processo, a advogada indígena Maíra Pankararu, incluiu o direito desse povo ao acesso a energia elétrica e outros benefícios, como a construção de escolas e quadra de esporte na região onde vivem. A votação também foi unânime.

A Comissão Nacional da Verdade levantou que mais de 8 mil indígenas foram mortos e perseguidos pelo regime militar. O número é superior aos 434 óbitos e desaparecidos urbanos, ligados a grupos opositores do regime de exceção.

Ao longo da ditadura, entre 1964 e 1985, os indígenas sofreram torturas e tentativas de desumanização, como prisão arbitrária, trabalho análogo ao escravo e proibição da fala da língua materna. Em Minas, em 1969, foi instalado o reformatório krenak, em Resplendor. A instalação foi comparada a um campo de concentração em relatório da CNV. No local, indígenas de 23 etnias foram presos.

O governo militar, à época, criou a Guarda Rural Indígena, que usou integrantes dos povos indígenas como "soldados", que reprimiam outras etnias e prendiam seus representantes no reformatório. Os guarani-kaiowá também foram alvo de remoção forçada pelos militares. Tiveram de deixar suas terras, que não foram demarcadas até hoje.

Chineses

Completa 60 anos, hoje, o caso de perseguição que talvez mais exponha ao vexame o senso de desconfiança dos golpistas de 1964. A Comissão de Anistia aprovou, ontem, a condição de anistiados políticos a nove chineses que foram presos, torturados e acusados de serem subversivos e de estarem no Brasil para implantar o comunismo. Tratava-se, na verdade, de uma missão diplomática da China que viera comercializar algodão. 

Os chineses — condenados a 10 anos prisão — foram expulsos do Brasil, sem que fosse encontrada qualquer prova que demonstrasse a teoria dos militares. Entre as "provas" encontradas pelas autoridades estavam algumas agulhas de acupuntura, entendidas pelos agentes do governo como injeções envenenadas que seriam aplicadas em alguns oficiais. 

O caso foi ironizado na comissão. O relator, o conselheiro Manoel Almeida, citou em seu voto que a suposta ameaça foi tratada como "um plano diabólico que saía da aventura do 007" — o fictício agente do serviço de espionagem britânico. "Estou tentando não rir e dar um ar de solenidade a este julgamento. Surreal acreditar que a China de Mao (Tsé-Tung, líder da revolução chinesa) mandou nove homens, com crachá diplomático, para aplicar injeção indolor que fulmina alguém", disse o relator.

Outro conselheiro, Marcelo Uchôa, disse se tratar do "processo mais esdrúxulo" que julgou no colegiado. "Além de tudo, é xenofobia. Só foram presos por serem chineses. E foram achincalhados pela ditadura", criticou. 

A anistia aos chineses foi aprovada por unanimidade. Dos nove presos e torturados, só um está vivo.

 

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postado em 03/04/2024 03:55