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Quando a descontração pode afetar a imagem

Postura de autoridades em festas desafia limites da liturgia do cargo e esquenta debate sobre efeito dos flagrantes de relaxamento em tempos de redes sociais

O gole de uísque do presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), no gargalo, em uma festa junina na Paraíba, viralizou em questão de horas. O gesto, registrado em vídeo e disseminado nas redes sociais, provocou uma avalanche de críticas, reacendendo o debate sobre os limites entre o lazer pessoal e a liturgia dos cargos públicos. Mesmo sendo uma tradição das festas de junho no Nordeste — desafia-se alguém a tomar um longo gole de uma bebida forte —, a cena durou segundos, mas o impacto político promete reverberar por mais tempo.

O caso de Motta não é isolado. Em fevereiro de 2024, o então presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), desfilou pela Beija-Flor — cujo patrono é o banqueiro de bicho Aniz Abraão David, o Anísio — na Marquês de Sapucaí, no carnaval carioca, em um enredo patrocinado por Maceió, sua cidade natal.

Os episódios envolvendo políticos em situações informais descontraídas evidenciam que, em tempos de comunicação digital, a linha entre o público e o privado tornou-se tênue. A busca por proximidade com o eleitor, quando mal calculada, pode, rapidamente, transformar-se em fator de desgaste. Embora a participação em eventos populares faça parte da vida social de qualquer figura pública, especialistas reforçam que é indispensável que os ocupantes de cargos eletivos compreendam o peso de suas ações. A liturgia dos cargos não se limita ao plenário ou aos gabinetes — acompanha o parlamentar em todos os espaços, inclusive nas redes sociais e em momentos de lazer.

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O marqueteiro pernambucano Jurandir Miranda, especialista em campanhas eleitorais no Nordeste, destaca que a exposição nas redes amplia os efeitos de cada ação. "O que pode parecer um momento de descontração para Hugo Motta, se transforma, rapidamente, em um símbolo de descompromisso com as responsabilidades que seu cargo exige", adverte.

Miranda ressalta que, em um cenário de crescente desconfiança pública, atitudes aparentemente banais podem piorar a imagem já ruim da representação política. "O risco de banalizar situações que deveriam ser tratadas com seriedade se torna evidente, especialmente em um cenário em que a confiança do público em seus líderes já está abalada", lembra, chamando a atenção para o despojamento tornar-se um aspecto negativo.

"O que pode parecer um momento de descontração para Hugo Motta, se transforma, rapidamente, em um símbolo de descompromisso com as responsabilidades que seu cargo exige", afirma.

Para Natalia Valle, especialista em media training e gestão de imagem e reputação, a era digital tem redefinido a maneira como os políticos se relacionam com o público, com impacto na liturgia dos cargo. "Casos como o do presidente da Câmara dos Deputados beber uísque no gargalo da garrafa são reflexos de uma era em que a busca não é mais só pela atenção. As pessoas querem alcançar a intimidade do outro, compartilhar do senso de pertencimento em comunidade", afirma.

A especialista observa que essa exposição não é um simples deslize. Pode ser parte de uma estratégia calculada para criar identificação com públicos mais jovens ou distantes da política tradicional. Natália, no entanto, faz um alerta: "A estratégia pode até funcionar em um primeiro momento, mas é preciso ter muita atenção para não extrapolar os limites de um agente público", alerta.

Gesto arriscado

Ela acrescenta que a viralização de vídeos em festas pode até ser usada como uma tentativa de aproximação com eleitores desinteressados pela política tradicional, mas adverte para os riscos. "Talvez, ao viralizar vídeos com esse tipo de comportamento, eles tenham percebido que podem ter uma aproximação da população que nunca teriam se seguissem à risca a formalidade que seus cargos exigem. A estratégia pode até funcionar em um primeiro momento, mas é preciso ter muita atenção para não extrapolar os limites éticos de um agente público", alerta.

O cientista político Flávio Vasconcelos, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), avalia que a exposição de políticos em festas e eventos, como o caso de Hugo Motta, reflete um fenômeno mais amplo de transformação na comunicação política. Mas a busca por engajamento rápido traz efeitos colaterais.

"Muitos políticos acreditam que a viralização é sempre boa, mas a verdade é que estão sujeitos ao escrutínio permanente e a críticas em larga escala", destaca e reforça que, no atual ambiente de comunicação digital, a exposição gera o dilema "ganho de visibilidade x risco de rejeição".

Adriano Canuto, também especialista em marketing político, ressalta que há potenciais ganhos de imagem quando o político aparece como alguém acessível e "do povo". "Participar de festas e eventos tradicionais mostra alinhamento com a cultura popular e pode humanizar a figura pública. O problema começa quando isso parece oportunismo ou falta de responsabilidade", explica. Para ele, a chave está no equilíbrio entre autenticidade e sobriedade. "Ações espontâneas pagam o preço. Há uma linha tênue entre mostrar o lado humano e comprometer a reputação profissional", observa.

*Estagiária sob a supervisão de Fabio Grecchi


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