A Comissão Camponesa da Verdade (CCV) realiza nesta terça-feira (1º/7), às 10h, na Câmara dos Deputados, uma audiência pública para discutir a repressão política no campo brasileiro e cobrar o Estado reconhecimento e reparação por violações históricas.
De acordo com levantamento da comissão, entre 1961 e 2023, foram registrados 3.508 assassinatos de camponeses e aliados políticos em áreas rurais, sendo 1.062 durante a ditadura militar. Apesar disso, apenas 45 dessas vítimas foram reconhecidas pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), que funcionou entre 2012 e 2014 para investigar crimes cometidos pelo Estado no período de 1946 a 1988.
"O levantamento que fizemos identificou 2.068 camponeses e aliados assassinados até 1988, ano da Constituição. A Comissão Nacional da Verdade reconheceu apenas 45: 41 camponeses e 4 aliados. Isso é uma injustiça gravíssima. É uma visão colonial, como se o campo não fosse um espaço de política", afirmou Gilney Viana, um dos fundadores da CCV. "Muitos foram mortos por tentarem se sindicalizar, por lutarem por cidadania. A justiça de transição falhou com os camponeses".
Criada em 2012 por decisão de representantes dos movimentos do campo, da floresta e das águas reunidos, a CCV é composta por lideranças populares e pesquisadores dedicados à memória, verdade, justiça e reparação no meio rural.
Gilney destaca que, mesmo com o fim da ditadura, o apagamento histórico continuou. "Essas pessoas não foram ouvidas nem pela Comissão Nacional da Verdade, nem pela Comissão de Mortos e Desaparecidos, e, na Comissão de Anistia, de forma muito limitada", relatou.
A expectativa da comissão é que a audiência sirva como um passo institucional para o reconhecimento dessas vítimas, com apoio de parlamentares e da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. "Queremos que abram espaço para os casos do campo, assim como fizeram para outros nomes importantes. Também exigimos que a Comissão de Anistia tenha um olhar adequado para a repressão política no campo, que foi diferente da repressão urbana", destacou Gilney.
Ele criticou a atuação de governos progressistas, apontando que "sempre tiveram mais ligação com a luta política urbana" e que "reproduzem, muitas vezes, a visão tradicional de que os conflitos no campo não são políticos, mas meramente fundiários".
Assassinato de João Canuto
A audiência contará com a participação de Luzia Canuto, historiadora, integrante da CCV e filha do líder sindical João Canuto, assassinado em 1985 no Pará. "A história da minha família é marcada pela violência e pela impunidade. Meu pai foi assassinado em 1985. Ele já era militante antes mesmo do movimento sindical. Naquele ano, o Brasil discutia o Plano Nacional de Reforma Agrária e foi quando surgiu também a UDR (União Democrática Ruralista), que passou a marcar pessoas para morrer. Meu pai denunciou ameaças, registrou ocorrência, mas em dezembro foi assassinado", contou Luzia.
Os anos seguintes apenas reforçaram o padrão de violência e impunidade. "Em 1990, meus três irmãos foram sequestrados. Dois foram mortos, o terceiro sobreviveu baleado. Também não houve interesse do Estado em investigar os mandantes. Depois de muita pressão, dois fazendeiros foram condenados pelo caso do meu pai, mas nunca foram presos. Os executores, sequer investigados".
Luzia lembra ainda que, antes do sequestro, seus irmãos chegaram a ser presos sob acusação forjada. "A polícia tentou esconder a prisão dos meus irmãos em 1989. Eles eram sindicalistas. Descobrimos que estavam presos e sendo acusados de um assassinato que não cometeram. Havia ligação entre fazendeiros e policiais. Em 1990, dois deles foram assassinados e o outro sobreviveu. Os envolvidos eram policiais militares contratados como pistoleiros. Um foi condenado, fugiu, voltou a cometer crimes e só então foi preso. O outro, nunca foi localizado".
O caso dos irmãos prescreveu, como tantos outros da região. "O caso dos meus irmãos prescreveu sem apontar os mandantes. Assim como outros. Um sindicalista, Braz Antônio de Oliveira, foi morto em 1990 pelos mesmos policiais que mataram meus irmãos. Também não houve justiça. Outro presidente do sindicato, Expedito Ribeiro de Souza, foi assassinado anos depois. Houve julgamento, mas o fazendeiro responsável não foi preso. Em 2019, o pai da minha filha, Carlos Cabral, também foi assassinado".
Sobre esse caso mais recente, ela afirma que ainda tramita na Justiça, com avanços lentos. "Aconteceu em 2019 e correu sob segredo de justiça por muito tempo. Recentemente houve algum avanço, mas ainda sem responsabilização completa. O nome apontado desde o início foi de um fazendeiro, mas não posso te confirmar se ele está sendo processado", contou.
Para Luzia, não há dúvidas de que a motivação por trás das mortes foi política. "Meu pai era sindicalista e defensor da reforma agrária, dos direitos dos trabalhadores, da educação, saúde e moradia. Os meus irmãos e o Carlos Cabral também eram sindicalistas. Defendiam direitos básicos. E isso era uma afronta para quem controlava a terra. Muitos dos assassinatos aconteceram em áreas onde o próprio Estado estimulou o conflito. A CPT tem registros disso. A violência era sistemática e organizada".
Como historiadora, ela teve acesso a documentos que revelam o modo como o Estado tratava sua família. "Recentemente tive acesso a arquivos do período da ditadura no Arquivo Nacional. Descobri que ao invés de investigar quem matou meus familiares, o Estado investigava a minha família. Mesmo depois da ditadura, isso continuou. Isso me revolta. As provas estavam lá, mas o foco era nos defensores de direitos".
As ameaças que sofreu ao longo da vida a obrigaram a viver sob proteção. "Nos anos 90, depois da morte dos meus irmãos, tive que sair da cidade. Minha família se dividiu. Eu morei em Belém, depois voltei. Fui integrada ao Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos. Tive acompanhamento da polícia e hoje tenho contatos de emergência. Mas até hoje vivo com receio. Mudei meu jeito de viver. Pouco me exponho", disse Luzia, que ainda vive em Rio Maria, onde tudo aconteceu.
Essas ameaças foram explícitas, por telefone e por terceiros. "Pistoleiros chegaram a ir na casa da minha mãe. Disseram saber onde meu irmão estava internado. A sensação era de que queriam exterminar nossa família. Por isso, passamos a esconder nossa rotina, viver em silêncio. Minha vida mudou completamente".
Para ela, a audiência é uma chance de finalmente ser ouvida. "Queremos que nossos casos não fiquem de fora. Que nossas histórias sejam ouvidas. Não sei se haverá justiça, mas queremos memória, reparação, o direito de falar. Nossa dor é real, as perdas são irreparáveis. E a história do campo, da ditadura até hoje ainda precisa ser contada de verdade", contou.
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Desde 1985, o Brasil discute a reforma agrária como uma política pública de redistribuição de terras, mas os conflitos agrários permanecem atuais. Em 2024, o país registrou 2.185 ocorrências de conflitos no campo, segundo a Comissão Pastoral da Terra — o segundo maior número desde 1985, atrás apenas de 2023, com 2.250 casos.
