Análise

Nas entrelinhas: Sem poder dissuasório, Lula depende da força das instituições

A crise só escalou no gogó do presidente Lula; nos bastidores, o governo tenta abrir as negociações com Trump, por meio do vice-presidente Geraldo Alckmin

2707-Entrelinhas -  (crédito: Valdo Virgo)
2707-Entrelinhas - (crédito: Valdo Virgo)

Comecemos por Domingos Fernandes Calabar, conhecido como grande "traidor da pátria", em contraponto aos heróis da Batalha de Guararapes, contra os invasores holandeses, em Pernambuco, no século XVII: André Vidal de Negreiros (militar paraibano), João Fernandes Vieira (militar e senhor de engenho português), Henrique Dias (negro liberto) e Filipe Camarão (índio potiguar). Eles lideraram a resistência aos holandeses e são os heróis do mito fundador do Exército brasileiro.

Proprietário de terras alagoano, Calabar foi julgado pela historiografia como sendo um execrável traidor, que facilitou a instalação dos holandeses nas antigas capitanias de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. Em 1635, porém, na região de Porto Calvo, acabou sendo capturado e condenado à morte por traição. No dia 22 de julho de 1635, foi enforcado; seus restos mortais, esquartejados e espalhados em praça pública.

Sua morte não impediu a ocupação do Nordeste pelos holandeses de 1630 a 1654, cuja gestão colonial foi profundamente marcada pela administração de Maurício de Nassau, militar alemão enviado pela Companhia das Índias Ocidentais para governar a colônia holandesa. A forma como geriu os negócios coloniais na região, visivelmente mais branda do que a portuguesa, possibilitou a prosperidade material dos colonos. Durante o regime militar, no musical "Calabar, Elogio da Traição", de Chico Buarque de Holanda, o mito foi relativizado.

A História concede a seus personagens um tratamento no qual não podem sair em defesa própria, pela inevitável barreira espaço-temporal, mas que são revisitados pelos historiadores. Jair Bolsonaro e seus filhos, o senador Flávio (PL-RJ) e o deputado Eduardo (PL-SP), não deveriam subestimar a força do mito de Calabar no imaginário brasileiro. O clã assumiu a responsabilidade pelo tarifaço de 50% contra as exportações brasileiras, cuja entrada em vigor está prevista para 1º de Agosto.

Bolsonaro e seus filhos estão sendo acusado de trair o povo brasileiro pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Isso vai ao encontro do patriotismo dos brasileiros, mas nem por isso simplifica as coisas. A situação é dramática. O Brasil não tem poder de dissuasão para enfrentar o presidente Donald Trump, cuja mão pesada se faz sentir em todo o mundo. Tudo indica que somente negociará com o Brasil após o tarifaço entrar em vigor.

Trump não dá sinais de que renunciará à exigência de impunidade para Bolsonaro, seu aliado, em razão de um acordo com o Brasil que satisfaça aos interesses econômicos dos Estados Unidos. Lula reage à chantagem de forma firme, mas a fronteira entre a altivez e a soberba é muito ténue, assim como entre o risco calculado e a irresponsabilidade. Vamos ter que "aguentar o aguaceiro pelas ventas", como dizem os marujos portugueses, e fundear com duas âncoras em meio à tempestade. Isso depende da resiliência de nossas instituições.

Teoria do Louco

Para alguns analistas, Trump adotou a Teoria do Louco, de Thomas Schelling, professor de Harvard, na qual a irracionalidade aparente tem racionalidade e visa forçar o adversário a uma negociação pela intimidação. A questão de fundo é o endividamento dos EUA, que ameaça sua estabilidade fiscal e a dos parceiros comerciais. Sua dívida pública líquida saltou de US$ 1,5 trilhão, em 2000, para US$ 26,5 trilhões, em 2024. A dívida bruta atingiu US$ 37 trilhões (115% do PIB).

Pela lei orçamentária aprovada por Trump, cortes de impostos para os mais ricos e aumento dos gastos militares devem gerar um acréscimo de US$ 3,9 trilhões de deficit até 2034, mesmo com cortes em saúde e educação. Esse gargalo fiscal explica em parte a postura agressiva da Casa Branca no comércio internacional. Tarifas elevadas cumprem múltiplas funções: recolher receitas, pressionar parceiros e alimentar o eleitorado interno com gestos protecionistas. A Casa Branca quer transferir essa dívida para os parceiros comerciais.

 

Coerente com a Teoria do Louco, Trump exerce um poder performático e imprevisível para obter concessões. O tarifaço contra o Brasil não tem justificativa econômica sólida. Nos tornamos um alvo simbólico e ao seu alcance, para intimidar os demais países do Brics, a América Latina e o Canadá. O Brasil tem a 10ª economia do mundo, mas não tem poupança interna nem autossuficiência tecnológica, muito menos coesão política interna e poder de dissuasão militar para suportar uma rutura com os EUA.

Ao contrário da China, que responde com contramedidas imediatas, recorremos a notas técnicas e declarações retóricas. A crise só escalou no gogó de Lula. Nos bastidores, o governo tenta abrir as negociações com Trump, por meio do vice-presidente Geraldo Alckmin e dos senadores que chegarão amanhã em Washington. No plano global, os credores americanos — públicos e privados — observam com preocupação a explosão da dívida. Nesse aspecto, as tarifas funcionam como válvula de escape: geram caixa e projetam liderança no curto prazo.

Confirmada a imposição da tarifa de 50% ao Brasil, é provável que haja exceções estratégicas para produtos cujo encarecimento poderia afetar a inflação norte-americana, como alumínio e carne. O Departamento de Comércio dos EUA declarou que Trump "continuará aberto à negociação", ou seja, sugeriu que o tarifaço é antes um instrumento de barganha do que uma política definitiva, até porque afeta as relações entre as empresas norte-americanas e suas filiais no Brasil. A conferir.

  • Google Discover Icon
postado em 27/07/2025 04:00
x