O primeiro dia do julgamento, no Supremo Tribunal Federal (STF), dos integrantes do "núcleo crucial" da tentativa de golpe de Estado, foi marcado pela dúvida em relação à delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid. Enquanto os advogados do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro defenderam a validade do acordo fechado com a Polícia Federal, a defesa do almirante Almir Garnier, ex-comandante da Marinha, a atacou diretamente e levantou a possibilidade de que seja anulada.
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Não é de agora que o acordo fechado entre o tenente-coronel e a PF é motivo de contestação. Ao apresentar a denúncia, em 14 de julho, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, sugeriu que os benefícios concedidos a Cid sejam reduzidos, com a pena diminuída ao patamar mínimo previsto em lei (um terço da condenação), em vez do perdão judicial ou de uma pena mais branda — conforme solicitam seus advogados.
Por ser o delator, a equipe de Cid abriu as sustentações orais. O advogado Jair Alves Pereira fez questão de assegurar que o tenente-coronel não sofreu qualquer tipo de coerção ao longo dos depoimentos que prestou, como alegam outros réus, e rebateu críticas ao número de oitivas convocadas pela PF. Ele lembrou que o militar participou de 11 sessões com os investigadores, em grande parte, para reconhecer pessoas e locais relacionados aos atos golpistas.
"Depois de ele estar com cautelares diversas da prisão, afastado de suas funções, pediu baixa do Exército. E agora, ao final, o Estado diz: 'Não, realmente, tu me ajudou, tá tudo certo, mas eu vou te condenar'. Se fizermos isso, acabou o instituto da colaboração premiada. Ou ele vale, ou ele não vale", apontou Jair Pereira. Ainda na sustentação, o advogado defendeu as "escorregadas" de Cid e salientou que não é exigível que um delator, que se expôs como o militar, consiga "trazer detalhes" sem "contradição".
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"Não posso exigir, pelo abalo emocional, pressão. É uma coisa que a natureza autoriza que ele possa dar uma escorregada, mas jamais sem comprometer o acordo", observou.
Cezar Bitencourt, que chefia a equipe de defesa de Cid, reforçou a legitimidade do acordo firmado entre Cid e a PF: "Há um elemento que ultrapassa o absurdo jurídico e entra no campo da injustiça moral. Generais, coronéis e oficiais foram claros e uníssonos: Mauro Cid jamais articulou um golpe, jamais apresentou propostas ilegais", disse.
A defesa do ex-comandante da Marinha foi enfática ao pedir a anulação do acordo do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. Para o advogado Demóstenes Torres, os depoimentos de Cid não poderiam embasar a acusação de que o almirante teria colocado tropas à disposição do golpe — lembrou que Paulo Gonet qualificou o tenente-coronel como "omisso, contraditório, resistente ao cumprimento das obrigações pactuadas" e faltoso com a lealdade durante o acordo.
"Pergunto a vossas excelências: é possível convalidar essa delação ou ela tem que ser rescindida?", cobrou, destacando que aceitar uma colaboração em tais condições comprometeria a integridade do julgamento.
Para ele, a tentativa da PGR de rebaixar o acordo, mantendo a validade das informações, mas reduzindo os benefícios ao delator, é "incongruente" e fere decisões anteriores do próprio Supremo. "Essa mitigação não existe em nosso ordenamento. Ou a colaboração é homologada e cumprida em sua integralidade, ou é rescindida", afirmou.
Na estratégia de fragilizar a acusação, Demóstenes também levantou a tese de que o 8 de Janeiro não configuraria crime, mas um caso de "desistência". Para justificar a tese, citou o episódio em que o ex-procurador-geral Rodrigo Janot entrou armado no STF para atentar contra o ministro Gilmar Mendes, mas não foi processado por tentativa de homicídio por ter desistido da ação. "Essa narrativa do 8 de Janeiro é bastante incongruente. Se tudo isso aconteceu, eles desistiram. O arrependimento existe", disse.
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Já a defesa do deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), ex-diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), tentou passar a imagem de que ele era uma espécie de "anotador" da gestão Bolsonaro. Segundo o advogado Paulo Cintra, seu cliente não fazia mais parte do governo na época em que a PGR cita sua atuação do núcleo crucial da trama golpista. Mais: negou que o hoje parlamentar tenha atuado na campanha de descrédito ao sistema de votação.
"Ramagem não atuou para orientar, não era ensaísta de Jair Bolsonaro. Ele compilava pensamentos do presidente. Isso aconteceu nesse documento, presidente.docx, e também no documento presidenteinformatse.docx", explicou, negando, ainda, que seu cliente tenha usado a Abin para monitorar autoridades.
No caso da defesa de Anderson Torres, o advogado Eumar Novacki negou que seu cliente tenha se ausentado propositalmente do Distrito Federal no 8 de Janeiro — era o secretário de segurança do DF e viajou para os Estados Unidos dias antes, a pretexto de passar férias com a família. Sobre a minuta do golpe apreendida na casa do ex-ministro da Justiça, o advogado afirmou que o documento vinha circulando na internet.
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