Segurança pública

Equiparação de facção a terrorismo abre brechas

Especialistas ouvidos pelo Correio advertem: reclassificar organizações criminosas — como quer a oposição no Congresso — fragiliza a soberania. Mais: se choca com a legislação, não resolve o drama da violência nem aumenta a eficiência contra os ilícitos

A megaoperação contra o Comando Vermelho no Rio de Janeiro, que deixou 121 mortos, trouxe de volta à tona a discussão sobre se as facções criminosas podem ser enquadradas, também, como grupos terroristas. Para os defensores dessa teoria na extrema-direita, tal equivalência é uma realidade, uma vez que CV e Primeiro Comando da Capital (PCC) — que em vários pontos do país estão associados a  organizações criminosas locais — controlam parcelas de territórios, impõem leis próprias e têm braços nas instituições que compõem o poder público, com ligações nas polícias, nos Três Poderes e na economia formal. Daí porque, no Congresso, a oposição tenta emplacar o Projeto de Lei Antifacção com uma redação que as equipara a terroristas.

Para a esquerda, seja no Parlamento, na academia ou nos think tanks que se dedicam à discussão do tema, essa equivalência não é tão simples quanto querem fazer parecer os direitistas, recorrendo, segundo estudiosos, à simplificação do debate para obter apoio junto à população. Tais especialistas advertem que as facções devem ser combatidas com extremo rigor, mas sem torná-las atores da política, que seria abrir uma fragilização na soberania nacional.

Os dois lados têm pontos de vista inconciliáveis. A prova disso é que o substitutivo do PL Antifacção, que vem sendo elaborado pelo deputado federal Guilherme Derrite (PP-SP) — secretário de Segurança Pública licenciado do estado de São Paulo —, fechou a semana passada com quatro versões. Há a possibilidade de que seja votado amanhã ou quarta-feira na Câmara, porém nem oposição nem governistas têm ideia do que seja o texto a ser apresentado.

Para o advogado constitucionalista Beethoven Andrade, primeiramente, há um erro na discussão, pois é necessária a existência de motivação ideológica para uma facção ser considerada um grupo terrorista. "O crime organizado visa, essencialmente, ao ganho financeiro por meio do controle do tráfico de drogas e de armas, e da lavagem de dinheiro. Além disso, a legislação brasileira exige que os atos de terrorismo sejam perpetrados com o propósito de provocar terror social generalizado e sejam motivados por xenofobia, discriminação, preconceito de raça, cor, etnia ou religião — sendo o lucro explicitamente excluído dessa definição", explica.

Jackson De Toni, professor de ciência política do Ibmec Brasília, afirma que, politicamente, a equiparação das facções ao terrorismo alinharia o Brasil a países que tratam o narcotráfico e o crime organizado como ameaças à segurança global. No entanto, há também o risco de abusos e de militarização ainda maior da segurança pública.

"Isso implicaria numa reorganização da Política Federal, o que demandaria mais efetivo e recursos operacionais. Nenhuma medida isolada, sem uma estratégia ampla, coordenada e persistente ao longo dos anos, que consolide a presença da legalidade do Estado nos territórios, pode agravar ainda mais a violência nas comunidades. Na prática, declarar o Comando Vermelho uma organização terrorista fortaleceria o aparato de segurança e traria consigo dilemas jurídicos", destaca.

A advogada criminalista Bárbara Lima partilha do mesmo entendimento. "Essas mudanças, além de não serem vantajosas, não ampliariam os poderes investigatórios. Isso porque as ferramentas processuais, os meios de obtenção de prova e as legislações que tratam da cooperação internacional já são utilizados no combate às organizações criminosas", frisa.

Perigoso pretexto

O professor e advogado Rafael Seixas Santos avalia que classificar faccionados como terroristas pode criar instrumentos para atuação extraterritorial e cooperação militar, podendo impactar dimensões da soberania nacional. "Na prática, a tipificação por si só não impõe intervenção estrangeira, mas pode servir de pretexto político-diplomático. Se houver pedidos de cooperação militar ou designações externas por potências estrangeiras, abre-se margem para pressão internacional", adverte.

Segundo ele, a intensificação da troca de informações e da inteligência pode tornar o país mais vulnerável a interesses estratégicos de outras nações. "Embora a equiparação não determine, automaticamente, uma intervenção, ela aumenta a exposição do país a iniciativas externas, sobretudo em contextos de fragilidade institucional", ressalta.

O governo do presidente Donald Trump inclui em sua lista de organizações terroristas grupos criminosos latino-americanos, como o venezuelano Tren de Aragua e seis cartéis mexicanos do tráfico de drogas. A Casa Branca manifestou intenção de incluir, também, facções brasileiras, sobretudo o PCC e o CV, que já têm conexões com máfias de todos os continentes.

"Isso significa facilitar intervenções estrangeiras no país e, até mesmo, de forma manipulativa, atribuir a certos governos uma participação no tráfico, enganando a população. É o que os Estados Unidos tentam fazer, de alguma forma, com a Venezuela. É uma forma de manipular a opinião pública", aponta o cientista político Paulo Ramirez, professor da ESPM.

A pretexto de atacar o narcotráfico venezuelano de forma implacável, forças militares norte-americanas vêm bombardeando pequenas embarcações, supostamente, a serviço de organizações criminosas que teriam o amparo do governo do ditador Nicolás Maduro.

Ameaça externa

A legislação brasileira define o que é terrorismo e o que nele se insere. A Lei Antiterrorismo (Lei 13.260/16) define tais atos como aqueles "cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública". A simples designação de um grupo como "terrorista" por um Estado não confere, automaticamente, a uma nação estrangeira o direito de intervir militarmente em território alheio. Mas há riscos, segundo Fabio de Sá e Silva, professor de estudos brasileiros da Universidade de Oklahoma (EUA).

"Essa classificação tende a facilitar a invocação da chamada doutrina do unwilling or unable ("incapaz ou não disposto"). Ao reconhecer, oficialmente, que determinada organização constitui uma ameaça à segurança, o Estado sinaliza preocupação. Mas se, ao mesmo tempo, demonstra incapacidade ou falta de vontade política para neutralizá-la, acaba criando as condições para que Washington sustente o direito de agir unilateralmente em autodefesa com base em suas leis domésticas e no Artigo 51 da Carta da ONU", explica.

Classificar facções como grupos terroristas representaria um risco de erosão da soberania nacional. Para Beethoven Andrade, isso abriria a possibilidade de uma intervenção externa dos EUA e levaria a um alinhamento geopolítico compulsório, em substituição à cooperação bilateral. "Essa competência abrange as relações internacionais, a política externa e a defesa nacional, incluindo o comando supremo das Forças Armadas (presidente da República). Um governador, ao solicitar apoio militar a outro país, estaria invadindo a esfera de competência constitucional da União e violando o pacto federativo", ressalta.

Embrião

O Palácio do Planalto enxerga um embrião disso no chamado Consórcio da Paz, que reúne governadores de direita que fazem oposição cerrada ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Logo depois da operação nos complexos do Alemão e da Penha, na Zona Norte do Rio de Janeiro, que deixou 121 mortos — quatro deles policiais —, os chefes dos Executivos de alguns estados reuniram-se no Palácio Guanabara não apenas para se solidarizarem com Cláudio Castro, mas, sobretudo, para anunciar uma cooperação entre eles mesmos, excluindo outras unidades da Federação alinhadas politicamente com o governo federal e, até mesmo, forças da União.

O próprio governador fluminense entregou um relatório — elaborado pela Inteligência da Secretaria de Segurança Pública do estado — ao Consulado dos Estados Unidos no Rio sobre suposta atuação do CV nos EUA e defendendo que a facção fosse classificada como narcoterrorista pelo governo de Washington. O objetivo de Castro era ampliar a cooperação com os EUA no combate ao CV e buscar a aplicação de sanções — por exemplo, por meio do Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros (OFAC), do Departamento do Tesouro americano — aos chefes da facção, o que poderia afetar as finanças e operações internacionais. Tal iniciativa, porém, foi à revelia do governo federal.

Para Rafael Seixas, um caminho para a segurança pública deve ser a da estratégia integrada, que combine repressão qualificada, inteligência contínua e enfrentamento das cadeias econômicas do crime, especialmente no financiamento, na lavagem de capitais e na logística das organizações. "É essencial fortalecer a cooperação entre Polícia Federal, ministérios públicos, forças estaduais, Receita Federal e instituições financeiras, com protocolos claros de quanto à manutenção da observância aos direitos fundamentais. Devem ser priorizadas investigações financeiras e mecanismos de rastreamento de ativos transnacionais, com intercâmbio jurídico internacional", observa. Isso, aliás, é defendido pelo governo federal, que dá como exemplo de eficiência Operação Carbono Oculto, que, em 28 de agosto, desarticulou um dos esquemas de lavagem de dinheiro do PCC.

Paulo Ramirez destaca a necessidade de uma reformulação completa no debate da segurança pública do Brasil. "É necessário um novo pacto social. A ideia do crime é continuar existindo e se perpetuar nas entranhas do Estado e das instituições. Por isso é que tráfico não é terrorismo. É necessário penas mais duras, investigações mais bem elaboradas, já que matando traficantes outros assumirão os mesmos postos", alerta.

 

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