
Por Eliana Lucena - Especial para o Correio
Aos 85 anos, após adiar por décadas seu maior sonho, finalmente ela concluiu o seu livro de crônicas, ingressando na faculdade de direito. Foram décadas de espera, enquanto se desdobrava entre o marido, os filhos e a velha máquina de escrever inglesa Wonderwood.
Sempre com um sorriso no rosto e cantarolando músicas de carnaval para superar momentos difíceis, décadas haviam se passado desde que informou ao pai que seu sonho era a advocacia. Recebeu a resposta de que faculdade "não era um local adequado para moças de família". Professora e mãe de família seria o desejável.
Por sorte, um recém- formado em medicina, de origem humilde e cheio de sonhos, entrou em sua vida. Apaixonaram-se e, em pouco tempo, estavam casados. Os primeiros filhos chegaram, veio a correria doméstica, o cuidar dos quatro pequenos, do marido, mas sempre com a máquina de escrever por perto. Sorveu o que pôde daquela relação.
Melhoraram de vida, curtiam os carnavais na capital e no interior de Minas. Daqueles anos os filhos têm lembranças dos dois chegando pela manhã. Ela com um vestido longo do tipo "tomara que caia". Anos depois, conheceram outros países. Em Paris, finalmente, visitou o Arco do Triunfo, um antigo desejo. Ficou deslumbrada.
Havia ciúmes, sim, depois de ela publicar um livro e escrever crônicas para um jornal local, ganhando visibilidade. Um dia, o ultimato acabou chegando quando o marido conheceu a redação: "Ou eu ou o jornal!"
Vieram mais três filhos, e o carro da família foi trocado por um utilitário. Foi uma das primeiras motoristas da cidade transitando entre mamadeiras, gritaria e caprichos das mais velhas. Uma loucura.
E assim a vida seguiu até a morte precoce do marido, ironicamente de uma doença de sua especialidade, e a perda imensurável de um filho. Mas seguiu adiante e, depois dos 40, conheceu um novo amor. Libanês, outra cultura, ele também com sete filhos do primeiro casamento. A arte de conciliar aquele caos entre as duas casas e o preconceito de muitos não a esmoreceu. Continuou a apreciar as mesmas cachaças especiais que degustava com o primeiro marido, retomando as crônicas e poesias. O segundo marido morreu anos depois.
Para as filhas, sempre a mesma cobrança: sejam independentes. Seu livro Vou atravessar o arco da velha veio junto com o ingresso na faculdade de direito, aos 85 anos. Nele, retrata passagens de sua vida e faz reflexões sobre o envelhecimento. Coisa que não cabia naquela explosão de vida. Não conviveu bem com grupos de terceira idade. "São interessantes, mas costumam nos tratar como débeis-mentais, chamando-nos de gracinhas, lindinhas e falando alto como se fôssemos surdas!"
Teve dificuldades de acompanhar os mais jovens e quase desistiu da faculdade. A memória já falhava. Com o incentivo dos colegas e professores, concluiu o curso, aos 88 anos. Morreu de câncer, dois meses após a diplomação.
Alguns questionavam sobre o que ela faria com o diploma. Dependendo do tom da pergunta respondia: "Serei ministra do Supremo Tribunal Federal". Para outros, dizia sempre com o seu bom humor: "Serei solidária com minhas contemporâneas como a velhinha do pó, as assaltantes de supermercados e a velhinha que espantou o bandido com uma barra de ferro, enfim, escritório lotado".
Em seu livro lançado em 2016, a autora finalmente respondeu ao pai que tanto admirava como jurista sobre a presença de uma moça na faculdade. "Acho que vc está querendo é viver no meio dos homens", dizia ele. Na contracapa, escreveu: Pai, como você tinha razão. Adoro viver no meio dos homens".
São muitas Marthas e Marias que precisam ter "força, raça e gana, sempre", como canta Milton Nascimento. E todas merecem homenagem!
Felizmente já cresce, em especial entre as novas gerações, homens que conseguiram fazer-se companheiros de caminhada.
Eliana Lucena é jornalista
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