
Sabe aquela sensação de se olhar no espelho e ter a impressão de que algo está errado com o seu corpo? Essa é a realidade de quem sofre com o transtorno dismórfico corporal (TDC), mais conhecido como dismorfia corporal ou dismorfofobia. A pessoa pode se ver no espelho repetidamente ou, ao contrário, evitá-los por completo. Mais do que isso, essa sensação se torna uma obsessão diária, a ponto de afetar a saúde mental, a autoestima e as relações.
A dismorfia é um transtorno psicológico que se encontra dentro do espectro do transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), pela preocupação excessiva, persistente e irracional com a própria imagem, que é distorcida e, muitas vezes, imaginada. O que difere os dois transtornos, segundo Maria Amália Pedrosa, psiquiatra do Hospital Sírio-Libanês, especialista em transtornos alimentares, é que, na dismorfia corporal, a preocupação tem que ser necessariamente ligada a questões corporais, e no TOC, não.
É causada por multifatores, como biológicos, sociais, ambientais e até genéticos. "Os estudos mostram que 8% dos pacientes que têm o diagnóstico de transtorno dismórfico corporal têm um familiar também com o mesmo transtorno. Hoje, estudamos o que se chama epigenética, em que a pessoa pode ter este gene, que seria uma predisposição, mas a manifestação do gene também depende de alguns fatores, como ambientais ou outros", explica a psiquiatra.
Pode, e está em sua maioria relacionada a outras enfermidades, como depressão, ansiedade ou transtornos alimentares. "Isso acontece porque o sofrimento com a imagem corporal pode desencadear pensamentos negativos, comportamentos compulsivos e até isolamento social. Cada pessoa apresenta um quadro único, por isso, o diagnóstico e o tratamento devem ser individualizados, acolhedores e multidisciplinares, envolvendo psicólogos, psiquiatras e outros profissionais da saúde."
Segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria, em 2022, tinha-se uma estimativa de 1% a 2% da população brasileira afetada pelo transtorno, correspondendo a cerca de 4 milhões de pessoas. Apesar da baixa porcentagem, muitas pessoas sofrem silenciosamente, por vergonha ou por acreditarem que seus pensamentos são "normais".
Realidade de muitos
Ter alguma insatisfação com o corpo é comum e faz parte da vida. A diferença está na intensidade e no impacto. "Na dismorfia corporal, o foco na aparência gera um sofrimento profundo. É um transtorno mental que exige atenção multidisciplinar e de profissionais especialistas. Já a insatisfação pontual, mesmo que desconfortável, não costuma afetar tanto a funcionalidade da pessoa no dia a dia", difere Andrea Levy, psicóloga e co-fundadora da ONG Obesidade Brasil.
Os afetados pela dismorfia corporal buscam esconder as pequenas imperfeições com o uso exagerado de maquiagem, roupas largas, bonés, máscaras e, em casos mais graves, com intervenções estéticas e cirúrgicas. Para evitar se expor, a pessoa procura o isolamento social, evita tirar fotos e ir a eventos.
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As comparações sempre existiram, de fato, mas hoje as redes sociais são os maiores gatilhos. Em um mundo digital bombardeado por imagens editadas, filtros de embelezamento e influenciadores com padrões corporais padronizados, a internet tem desempenhado um papel importante no desenvolvimento e agravamento da dismorfia, principalmente entre os adolescentes.
De acordo com Andrea Levy, o número de jovens com insatisfação corporal grave aumentou justamente na era digital. "A exposição constante a imagens idealizadas e filtros que distorcem a realidade cria um padrão inalcançável. Muitos adolescentes e jovens adultos acabam internalizando esses modelos como metas pessoais, sentindo-se frustrados e inadequados diante do espelho. É importante reconhecermos os limites do nosso corpo."
Assim como muitas pessoas, Déborah Belarmina, analista de planejamento de 24 anos, começou a perceber algo diferente durante a pandemia de covid-19, em 2020, quando tinha entre 19 e 20 anos. "Eu já fazia acompanhamento com minha psicóloga e, nas nossas conversas, comecei a falar mais sobre como via meu corpo. Eu treinava em casa, emagreci bastante, mas, no espelho, não via nenhuma mudança. Evitava chamadas de vídeo porque ficava obcecada com minha aparência na tela, e encontros com amigos ou festas eram difíceis. Usava roupas largas para esconder o que achava que estava errado. Eu me sentia desconectada da minha própria imagem, como se não me reconhecesse."
Comum entre os diagnósticos, a analista demorou para perceber que precisava de ajuda específica para tratar e melhorar a relação com seu corpo. "O mais difícil foi aceitar que o que eu via no espelho não era a realidade. No começo, senti muita vergonha de admitir que pensava assim. Achava que as pessoas iam me julgar, dizer que era frescura. Tinha muito medo de parecer exagerada, mas, com o tempo, abrir isso na terapia foi um alívio. Perceber que era um transtorno real me deu coragem para enfrentar", conta.
Após entender sua dismorfia, Déborah buscou o TikTok, por saber do grande alcance da plataforma, para contar um pouco de sua história e ajudar outras pessoas. "Vejo que cada vez mais as pessoas sofrem com isso, especialmente por causa das redes sociais, os filtros e a pressão estética que alimentam comparações irreais. Quero continuar compartilhando esse tema de vez em quando, porque sei que pode ajudar alguém a se sentir menos sozinho e buscar ajuda", conclui.
Impacto das redes
Em 2018, surgiu o termo “Snapchat dysmorphia”, que, em tradução livre, significa dismorfia de Snapchat, no ano em que o aplicativo estava em alta entre os jovens. Psiquiatras e estudiosos da área buscaram explicar o fenômeno em que as pessoas buscam procedimentos estéticos para se parecer com suas versões com filtros, em referência à rede que foi pioneira na criação de filtros para “embelezar” e “melhorar” a aparência nas fotos, maquiando-se e até mudando traços do rosto, como nariz e boca. Hoje, esses filtros são comuns em muitas redes sociais, como Instagram e TikTok.
Segundo a Academia Americana de Cirurgia Plástica e Reconstrutiva Facial, entre 2018 e 2019 houve um aumento de 72% na procura por procedimentos que se aproximavam da aparência filtrada. E, de acordo com a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, a procura entre os jovens entre 13 e 18 anos chega a 141%.
“É fundamental promover o autoconhecimento e cultivar uma visão mais crítica sobre os padrões de beleza impostos. Isso inclui reduzir o tempo nas redes sociais, escolher cuidadosamente os conteúdos consumidos, seguir perfis que valorizem a diversidade corporal e buscar referências reais e positivas, sem deixar de lado os cuidados profissionais necessários para cada caso. Além disso, selecionar as amizades, fazer mais atividades que não dependam de tela. Conversar sobre corpo com afeto, longe de julgamentos. E, quando a dor com a imagem corporal é muito intensa, procurar ajuda psicológica é um passo importante."
A terapia é a principal forma de tratamento, e, em alguns casos, é indicado fazer o uso contínuo de medicamentos. Praticas que estimulam o autocuidado, aliada à forma de tratamento melhora a qualidade de vida do paciente. De acordo com a psiquiatra Maria Amália Pedrosa, o transtorno dismórfico corporal é uma condição crônica e complexa que precisa ser gerenciada ao longo da vida.
“O principal ponto do tratamento é a qualidade de vida do sujeito. Então, quando o paciente está extremamente sintomático, ele leva muito tempo vivenciando essa angústia em relação a algumas partes do corpo, ou alguma parte específica, e ele se submete também a situações, inclusive, estressantes, de risco, diante disso. Então, o tratamento gerencia muito essa intensidade dos sintomas, algo que é importantíssimo para a qualidade de vida do paciente”, finaliza.
*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte
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