
Especial para o Correio — Cilene Vieira
Até chegar em Brasília, há quase 40 anos, eu tinha uma experiência mais singular com religiões. Cresci numa família católica e morando numa cidade do interior, estudando em colégio de freiras. No meu universo particular, além dos católicos, existiam os "crentes", como eram identificados os evangélicos tradicionais, que eram poucos.
Mas na mesma rua em que morava tinha uma Casa de Xangô, um terreiro de onde se ouvia batuques, palmas e cantigas, que me enchiam de curiosidade de menina sobre como seria um culto tão alegre, que permanecia cercado de mistérios porque a nós, católicos, naquela época, nenhuma aproximação era possível.
Essa falta de conhecimento no sentido de vivências com outras religiões me acompanhou até a minha juventude. Vim para Brasília sozinha, no final dos anos 1980. A capital no meio do cerrado me conquistou e tudo era motivo de observação, comparações e encantamento.
Era um universo novo, que me marcou bastante quando me deparei com uma grande quantidade de religiões, das mais diferentes matrizes, que se evidenciavam por todos os espaços. Igrejas católicas modernas, tão diferentes das que conhecia, existindo em áreas específicas, os templos budistas, judaicos, islâmicos, centros espíritas, e as pessoas adeptas de todo tipo de crença, desde as citadas a religiões de matriz africana, práticas filosóficas orientais, holísticas, místicas ou exotéricas, entre algumas seitas também.
Esse cenário religioso diverso e plural de Brasília foi para mim uma grande descoberta, principalmente pela integração com a cidade, onde alguns templos também se tornaram pontos turísticos, fazendo parte da diferenciação arquitetônica da capital modernista. Uma pluralidade religiosa que só aumentou ao longo dos anos, pois um simples passeio pela Via L2 Sul e Norte, com uma voltinha pelas quadras 900 do Plano Piloto confirmam que nessa cidade se pratica a definição de um Estado laico como em nenhuma outra.
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Isso sem entrar nas Regiões Administrativas, onde o que acredito ser a riqueza brasiliense da fé multiplica-se, incluindo a Praça dos Orixás, um espaço para oferendas e culto a divindades africanas, presente às margens do Lago Paranoá.
É fato histórico que, desde que nasceu, Brasília comporta todo tipo de credo e religião. Uma cidade que recebe e aceita os mais diversos tipos de manifestações de fé,que resultam da multiplicidade de culturas de pessoas que construíram e povoaram a cidade. Observar a capital sob esse prisma religioso é até hoje motivo de admiração pra mim. São cerca de quase mil templos religiosos, onde grupos ou a comunidade como um todo repetem, adaptam ou recriam rituais para manifestação de suas crenças, com muita liberdade.
Só para citar um exemplo, no meu ambiente de trabalho, temos uma equipe formada por católico, evangélico, espírita, umbandista e candomblecista, que convivem com respeito mútuo por suas crenças. A cidade que nasceu de um sonho profético de um padre e de "dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz", como escreveu Lucio Costa, mantém sua religiosidade, só que cada vez mais plural e múltipla em doutrinas, manifestações e práticas, que incluem ainda os sincretistas e os sem religião.
Cilene Vieira é jornalista e mestre em comunicação pela UnB, autora do blog Nosso Parque da Cidade, publicado no site www.correiobraziliense.com.br.
Revista do Correio
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