Cidade Nossa

Cidade Nossa: Brasília, capital de futuros possíveis

Na crônica deste domingo (31/8), José Manuel Diogo reflete sobre Brasília como cidade de experimentação cultural e laboratório de futuros, que pode se afirmar além da capital política do país

José Manuel Diogo, jornalista português
 -  (crédito: Divulgação)
José Manuel Diogo, jornalista português - (crédito: Divulgação)

Especial para o Correio — José Manuel Diogo

Chegar a Brasília é sempre chegar como estrangeiro. Foi assim comigo, vindo de Lisboa com os olhos de produtor cultural. Mas foi assim também com os próprios fundadores, que, ao desenharem a cidade no vazio do Planalto Central, experimentaram a sensação de pousar em terra incógnita.

Essa talvez seja a primeira verdade da capital: ninguém nasce natural de Brasília; todos se tornam brasilienses por escolha, por invenção, por desejo de experimentar. Essa condição de estrangeiro universal não é fraqueza — é força. É o que dá à cidade sua vocação de laboratório de futuros.

As linhas de Niemeyer e o traço de Lucio Costa continuam a pairar como pergunta sem resposta: já aprendemos a viver dentro desse projeto? A monumentalidade do concreto, tantas vezes acusada de fria, é apenas o primeiro gesto. A vida verdadeira acontece quando o desenho se abre para outras geometrias invisíveis: as dos palcos improvisados, das feiras literárias que brotam em praças, dos saraus que se estendem madrugada adentro. O olhar de fora revela um detalhe que os de dentro, talvez, já naturalizaram: Brasília pulsa cultura em lugares inesperados, como se precisasse se reinventar a cada esquina.

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Essa vitalidade se explica porque a cidade nasceu sem correntes. Não tem de disputar ruínas históricas nem de reverenciar tradições seculares. Pode ousar. Pode misturar. Pode ser tudo ao mesmo tempo. Cada artista que aqui chega traz um sotaque, uma memória, uma herança, e esse mosaico coletivo compõe um retrato novo do Brasil. Brasília tem a capacidade de condensar o país inteiro em poucas quadras: um palco em que todos os sotaques encontram microfone.

É verdade que muitos ainda a percebem como distante, isolada no Planalto, presa ao estigma de capital política. Mas talvez seja justamente essa distância que lhe dê singularidade. Washington também era vista apenas como sede de poder antes de reinventar-se como capital de museus. Berlim, depois da queda do muro, transformou ruínas em vanguarda. Lisboa, que parecia condenada à melancolia, ressurgiu como epicentro de encontros literários, musicais e artísticos. Brasília pode seguir esse mesmo destino — não copiando modelos, mas afirmando-se como a capital da experimentação cultural da América Latina, cidade-âncora de um país que precisa se reinventar.

O desafio é transformar potência em realização. Hoje, muito do que a cidade promete está em estado latente. Para dar o salto, a cultura precisa deixar de ser vista como ornamento e assumir-se como motor. Isso significa políticas de longo prazo, espaços acessíveis, financiamento consistente e, sobretudo, a convicção de que investir em arte é investir em identidade. Uma cidade que se reconhece pela sua produção cultural não depende de slogans; projeta-se pelo que oferece ao mundo.

Brasília já inventou arquiteturas de pedra e vidro; agora precisa inventar arquiteturas de convivência, de criação e de encontro. Precisa que suas cúpulas e esplanadas sejam acompanhadas de praças de música, galerias abertas, escolas de arte pulsando em cada bairro. Precisa ser também uma cidade que se oferece ao prazer da descoberta, em que o visitante encontre não apenas monumentos, mas histórias vivas.

No fundo, Brasília continua sendo o que sempre foi: uma promessa. Mas uma promessa que pode ser cumprida: não ser apenas capital do país, mas capital dos futuros possíveis.

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CB
postado em 31/08/2025 09:52 / atualizado em 31/08/2025 09:52
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