Comportamento

Amor que acolhe: quando a paternidade e a maternidade vão além do sangue

Reconhecimento da paternidade e da maternidade socioafetiva dispara no Brasil e cresce de forma histórica no Distrito Federal

Letícia e Igor Cardoso nutrem uma relação afetiva com José Janduy desde a infância -  (crédito: Arquivo pessoal )
Letícia e Igor Cardoso nutrem uma relação afetiva com José Janduy desde a infância - (crédito: Arquivo pessoal )

O número de reconhecimentos de paternidade e maternidade socioafetiva tem registrado avanços significativos no país nos últimos anos. Dados oficiais, divulgados pelo Painel DataJud do CNJ, mostram que, entre 2020 e 2024, o crescimento nacional foi de 845,7%, enquanto o Distrito Federal apresentou um salto ainda mais expressivo, de 18.100% no mesmo período.

No Brasil, o reconhecimento socioafetivo saiu de 665 registros em 2020 para 6.289 em 2024. Somente no primeiro semestre de 2025, já foram contabilizados 3.444 casos, o que indica que o ano pode fechar com novo recorde. No Distrito Federal, o avanço chama ainda mais atenção. Em 2020, foi registrado apenas um caso, enquanto em 2023, o número chegou a 40 e, em 2024, subiu para 182. Até junho de 2025, já foram realizados 146 reconhecimentos, sinalizando a consolidação da tendência.

Esse tipo de reconhecimento é feito a partir do vínculo de filiação constituído não pelo sangue ou pela adoção formal, mas pelo afeto, pela convivência contínua e pela demonstração pública da relação de pai/mãe e filho. A advogada Jaqueline Costal afirma que, juridicamente, a paternidade socioafetiva garante direitos e impõe deveres recíprocos entre pais e filhos, como sobrenome, pensão, guarda, herança e convivência familiar. 

"Melhor amigo e herói", é assim que a estudante Letícia Gabrielly Cardoso Coutinho de Almeida, 22 anos, define o pai socioafetivo, o consultor de TI José Janduy Coutinho Júnior, 57. Para ela, a ligação entre os dois vai muito além do sangue, eles se entendem, se apoiam e aprendem juntos. Letícia conheceu Janduy quando tinha cerca de 6 anos, época em que ele era seu padrasto. Um dia, ela e o irmão, Igor Cardoso, que também iniciou, mas ainda não concluiu o processo de reconhecimento, sentiram medo no elevador. Para acalmá-los, Janduy sugeriu que segurassem em sua perna. Naquele instante, Letícia o enxergou como porto-seguro e perguntou se ele queria ser seu pai de verdade.

Mesmo com o passar dos anos, ele continuou sendo a pessoa mais legal do mundo para a jovem, então, ao completar 18 anos, ela sugeriu que eles oficializassem a paternidade. "Foi um momento inesquecível. Nós dois choramos juntos de felicidade. O dia em que finalizamos o processo foi, sem dúvida, o mais feliz da minha vida", lembra a estudante. 

Orgulhoso e realizado, Janduy conta que, apesar de ter outros filhos, o processo de paternidade socioafetiva ocasionou grandes autodescobertas. "Amar filhos não naturais é uma das maiores provas de amor e evolução enquanto pessoa. Digo isso porque amar filhos de sangue é uma consequência natural, quase uma obrigação, mas amar filhos não naturais é uma escolha, é reciprocidade e é absolutamente sublime", declara. 

Para alguns, o reconhecimento oficial pode parecer apenas uma burocracia, mas Letícia considera que ganhou uma identidade. Além do sobrenome, é um sentimento de pertencimento, segurança e a confirmação de uma conexão que sempre existiu entre eles. Atualmente, Letícia mora em Ettelbruck, em Luxemburgo, e Janduy em Brasília, no entanto, nem mesmo a distância e o fuso horário reduziram o contato entre eles. "Estamos sempre conversando, seja por mensagens, seja por ligações. Compartilhamos nossas conquistas, nossas histórias e continuamos presentes na vida um do outro. Ele sempre será um dos pilares mais importantes da minha vida", diz a jovem. 

Do coração para o cartório 

O processo judicial pode ser moroso e difícil por conta da documentação e do tempo necessário. No caso de José Janduy, o reconhecimento de Letícia demorou mais de um ano e o de Igor ainda está em andamento. Embora seja feito diretamente nos cartórios, existem diversos requisitos para o trâmite, como a pessoa reconhecida precisa ter mais de 12 anos; o pretendente ter pelo menos 18 anos; irmãos entre si e ascendentes (como avós) não podem reconhecer; e o registrador deve apurar a posse do estado de filho (vínculo estável e socialmente exteriorizado).

De acordo com a advogada Jaqueline Costal, os desafios do processo são a resistência de alguns familiares biológicos, a burocracia quando não há consenso, a necessidade de comprovação efetiva da ligação afetiva e a falta de informação da população sobre a possibilidade de formalizar o registro. As provas que devem ser entregues incluem convivência contínua, reconhecimento social (como o filho chamar o socioafetivo de pai ou mãe), participação em documentos escolares ou médicos, fotos, testemunhos e outros elementos que demonstrem a existência de uma relação pública, duradoura e afetiva.

Além disso, a paternidade socioafetiva, declarada ou não, não impede o reconhecimento coexistente da relação biológica, o que torna viável a filiação múltipla. "O Judiciário pode manter a multiparentalidade ou, em casos específicos, reconhecer a prevalência do vínculo socioafetivo", diz Jaqueline. 

Direitos garantidos

A professora Maria Luiza Brito, 28, começou a conviver com o pai afetivo, o analista de sistemas Robson Guimarães, 52, aos 3 anos de idade e, com o tempo e a maturidade, percebeu que ele era sua família. Com o intuito de garantir direitos e deveres, eles decidiram fazer as documentações há dois anos. De acordo com Maria Luiza, mesmo o sentimento sempre tendo existido, foi um passo muito importante para ela. "Temos uma relação muito próxima, além de ser meu pai, ele é meu amigo", afirma. "Vale muito a pena oficializar isso", acrescenta. 

A conexão entre eles foi construída em pequenos atos, como a convivência no dia a dia, a rotina de levar para a escola, passear e conversar. Além disso, Robson se sentia especialmente emocionado com os primeiros trabalhos da escola para o Dia dos Pais, em que ele sempre era homenageado. Por terem uma longa história juntos, ratificar isso no papel foi muito especial para ambos. "Sempre me emociono ao lembrar do momento no cartório. Um sentimento de dever cumprido", conta Robson. 

A psicóloga e psicanalista Silvia Oliveira destaca o papel do laço socioafetivo na construção da autoestima, da confiança e da segurança emocional da criança. Do ponto de vista psicológico, o que mais impacta o desenvolvimento da criança é a qualidade da relação, não a origem dela. Por isso, para construir uma base sólida de confiança, o caminho é a constância no cuidado, a disponibilidade emocional e a validação dos sentimentos do outro. "Quando a criança sente que pode contar com figuras cuidadoras consistentes, desenvolve maior resiliência emocional."

É crucial ainda que cada um compreenda o seu próprio lugar dentro da rede familiar, pois a criança pode se sentir dividida ou insegura se houver disputas ou desvalorização de uma das figuras parentais. Silvia Oliveira considera que o mais importante é que os adultos consigam separar as diferenças pessoais do cuidado com a criança. "A orientação é que os cuidadores busquem diálogo respeitoso e, se necessário, apoio psicológico ou jurídico, sempre preservando o direito da criança a conviver de forma saudável com todos que fazem parte de sua vida afetiva", salienta a psicóloga. 

Apesar de não existir uma idade específica para abordar o assunto, é importante que haja comunicação adequada para cada fase do desenvolvimento. Quanto mais cedo o assunto for tratado de forma clara, honesta e compatível com o grau de compreensão infantil, mais natural será o processo. Para Silvia Oliveira, o segredo é tratar o assunto com verdade e afeto, evitando segredos ou revelações bruscas que possam gerar sentimentos de traição ou insegurança.

  • Janduy registrou paternidade socioafetiva de Letícia e iniciou o processo com Igor, filhos de Janaina Cardoso, com quem 
ele tem outros dois filhos
    Janduy registrou paternidade socioafetiva de Letícia e iniciou o processo com Igor, filhos de Janaina Cardoso, com quem ele tem outros dois filhos Foto: Arquivo pessoal
  • Maria Luiza Brito e Robson Guimarães formalizaram o vínculo socioafetivo para celebrar o amor que vai além da biologia
    Maria Luiza Brito e Robson Guimarães formalizaram o vínculo socioafetivo para celebrar o amor que vai além da biologia Foto: Arquivo pessoal
  • Letícia e Igor Cardoso nutrem uma relação afetiva com José Janduy desde a infância
    Letícia e Igor Cardoso nutrem uma relação afetiva com José Janduy desde a infância Foto: Arquivo pessoal
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postado em 07/09/2025 06:00 / atualizado em 07/09/2025 08:46
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