
Especial para o Correio — Cláudio Ferreira
Um homem é espancado e esfaqueado dentro de um ônibus. Seu erro: estar com uma camisa do Vasco da Gama perto de 10 torcedores flamenguistas. Sua pena: a morte.
Pode trocar os nomes dos times e colocar os que você quiser. A violência no futebol — não a do campo, mas a das torcidas — infelizmente não é exclusividade dos amantes de nenhuma equipe. Corrói o futebol nacional como um todo, tem uma coleção de episódios lamentáveis e parece não ter fim.
Como não sou um especialista no assunto, só fico assustado. A história do pai de 34 anos, interrompida pela estupidez, mostra, pelo menos pra mim, como caminhamos para a falta de civilidade. A tolerância com o que é diferente ou com o que não concordamos já ficou pra trás.
Meu primeiro pensamento é que se essa barbárie aconteceu por conta da discordância no futebol, o que virá diante de embates mais graves? Como estamos reagindo às incompatibilidades políticas, amorosas, profissionais? Quais fronteiras ultrapassamos sem perceber?
Leia também: Cidade Nossa: Brasília, capital de futuros possíveis
Leia também: Crônica Cidade Nossa: A linguagem performática dos possuídos realizadores
Às incompatibilidades políticas, estamos reagindo de maneira bem parecida. Perdemos a capacidade de discordar civilizadamente. Hoje em dia, não basta torcer para que o meu adversário político, aquele candidato com cujas ideias não concordo, não seja eleito. Ele precisa morrer. A família precisa sofrer. Ele deixou de ser um opositor e virou um inimigo.
No nosso dia a dia, perdemos a capacidade de discutir e ouvir opiniões contrárias à nossa. Nosso opositor da mesa ao lado é sempre classificado de radical — e nós somos sempre os equilibrados. Argumentos não servem mais: agora a tática é convencer pelo cansaço, apelar se for preciso, ganhar no grito. O fosso aberto pela polarização continua se alargando, vai se espalhando por questões que antes a gente nem relacionava diretamente com política.
Sobre as incompatibilidades amorosas, a prática tem sido a mesma. As estatísticas sobre violência contra a mulher estão aí para comprovar. Muitos homens não aceitam o fim de uma relação com uma mulher, não toleram que ela siga a jornada afetiva e demonstram sua contrariedade tirando, no mínimo, a vida dela. Eles tratam as parceiras como propriedade privada e as descartam sem piedade — não pensam nem nos filhos.
No terreno profissional, felizmente, há menos mortes. Mesmo assim, estabelecemos padrões do que é ser um bom profissional, que pré-requisitos são necessários e esses têm a flexibilidade de uma barra de ferro. Na luta diária pelos índices de produtividade, muitas vezes desumanizamos as relações profissionais. Por isso, o adoecimento no ambiente de trabalho, tanto o público quanto o privado, só aumenta.
O ódio está na vida real e virtual — nessa, sob a proteção da distância. Por isso, que tal virar a chave e olhar para o portador da camisa do Vasco ou do Flamengo só como um cidadão que está lá do outro lado do estádio e que vai ficar feliz se a gente ficar triste e vice-versa? Só isso. O amor acabou? Bola pra frente. Parou diante de uma opinião diferente? Ouça, contra-argumente, ouça, contra-argumente...