Especial

Entre o real e o simbólico: o que os sonhos dizem sobre nós

De dentes caindo a poderes impossíveis, o que sonhamos diz mais sobre emoções, medos e desejos do inconsciente do que imaginamos

interna capa sonhos -  (crédito: kleber sales)
interna capa sonhos - (crédito: kleber sales)

Dormir é um ato biológico essencial, mas também um mergulho profundo na mente. O ato de sonhar durante a noite atravessa fronteiras entre o consciente e o inconsciente, o espiritual e o cotidiano. Para alguns, os sonhos são apenas reflexos do que vivemos durante o dia; para outros, mensagens do além ou da própria alma. 

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Em meio ao mistério e à fé que permeiam os sonhos, algumas histórias evidenciam como essas imagens noturnas podem ser intensas e reveladoras. Para a servidora pública Rachel Queiroz, 47 anos, elas são um canal de comunicação com o divino. "Acredito que Deus pode falar conosco por meio dos sonhos", diz.

Entre os muitos sonhos marcantes que teve, um deles se destacou por mudar sua trajetória de vida. Quando tinha 27 anos e dois filhos pequenos, começou a estudar para concurso público, mas, com a rotina pesada, demorou quatro anos até a convocação. Na época, Rachel trabalhava na Câmara dos Deputados, mas ainda não era concursada. "Ia muito triste ao trabalho, pois minha vontade era ser servidora pública concursada", recorda. 

Rachel Queiroz teve o desejo de se tornar servidora pública concursada após um sonho
Rachel Queiroz teve o desejo de se tornar servidora pública concursada após um sonho (foto: Arquivo pessoal)

No entanto, em uma noite, enquanto dormia, ela viu morangos lindos e ficou com isso na cabeça. Ao chegar ao local de trabalho, comentou com uma colega que pesquisou o significado e descobriu que a imagem da fruta remetia à sorte em concurso público. Após cerca de 20 dias, saiu a nomeação de Rachel para o cargo que ocupa atualmente no Ministério da Saúde, que ela aguardava há um tempo.

Além do sonho com o concurso, Rachel relata outras experiências simbólicas. "Sonho muito que estou caindo de uma altura bem alta e acordo assustada. Também sonho com a época em que morava em Rio Branco, no Acre, e dizia para minha família que viria para Brasília prestar vestibular. Eles não queriam que eu viesse, mas eu insistia que meu futuro estava aqui."

A psicóloga e psicanalista Anny Caroline Martins explica que, para a psicanálise, os sonhos são a realização de um desejo inconsciente. "Essa afirmação pode parecer estranha, pois há uma variedade de sonhos em que os conteúdos não se assemelham em nada com um desejo; pelo contrário, eles aparentam ser completamente angustiantes, desconexos e até irrelevantes. Para Freud, isso é proposital", afirma. 

Segundo ela, os sonhos têm um conteúdo manifesto, que é a narrativa, e pensamentos oníricos ocultos, que são os desejos inconscientes. "Nem todos os nossos desejos são passíveis de serem compartilhados. Alguns são condenáveis do ponto de vista ético, estético e social e, por isso, devem permanecer ocultos."

Para a psicóloga, os sonhos são uma forma de o inconsciente se expressar mesmo sob censura. "Na impossibilidade de serem eliminados, os desejos relegados ao inconsciente precisam de um disfarce para serem vividos, mesmo que de modo alucinatório. E é neste local que o sonho entra: deformando o conteúdo verdadeiro por meio da sua associação com lembranças, representantes e símbolos."

A psicanálise vê o sonho como um enigma. Para ela, o trabalho de interpretação dos sonhos diz respeito à revelação do desejo e, portanto, ocorre a partir das impressões deixadas no sonhador. "Podemos sonhar com coisas que aconteceram naquele dia, retornar a um momento da infância, com uma pessoa que é uma mistura de duas, mundos e habilidades inexistentes, temas negativos que chamamos de pesadelos e até mesmo ter um sonho que se repete várias vezes", cita Anny Caroline. 

Impactantes

A estudante de publicidade e propaganda Maria Eduarda Figueiredo, 26, conta que lembra da maioria dos sonhos e que eles costumam ser intensos. Uma imagem noturna que a marcou por ser muito impactante e sensorial foi a de estar grávida. "O bebê mexia na barriga e até teve parto. Foi uma loucura, porque consegui sentir um vazio e falta de um bebê que nem tive de verdade", recorda. Outro episódio foi quando sonhou com o enterro do pai, desesperou-se e não o deixou andar de carro por dois dias. 

Apesar de os sonhos serem vistos como desejos ocultos na psicanálise, Anny Caroline salienta que não existe um significado específico ou absoluto. Então, no caso de sonhos com morte, por exemplo, são necessários diversos questionamentos, como traumas, saudades e diversos outros fatores que podem, inclusive, mostrar que a morte remete a alguma outra situação. 

Maria Eduarda também vê sentido espiritual nos sonhos e busca compreender seus significados. "Pesquisava muito na internet, mas, hoje, procuro o significado com meu terapeuta ou com uma mãe de santo. As duas formas são muito eficazes na minha vida", conta. Ela diz já ter procurado interpretações por sonhar com cobra, cachorro, gravidez e morte.

O que diz o tarô

De acordo com a taróloga e astróloga Beatriz Lima, os sonhos podem se tornar um canal de intuição e conexão espiritual justamente quando a mente está calma e receptiva durante o sono. "Nesse estado de serenidade, livre das interferências externas, a espiritualidade encontra espaço para se manifestar e se comunicar", acredita. 

Além disso, Beatriz lembra que "uma mente inquieta, ansiosa ou preocupada provavelmente levará a pessoa a sonhar com o que a aflige". Para ela, "a mente precisa estar calma e receptiva para que a espiritualidade se manifeste por meio dos sonhos".

Os símbolos oníricos, como cobras, dentes e morte, são comuns, justamente por representarem experiências universais. "Cobras são historicamente associadas à falsidade, mudanças ou cura. E a morte, tão temida, pode representar o fim ou o renascimento", explica Beatriz.

Para a taróloga e astróloga, o simbolismo dos sonhos também carrega alertas. "Sonhar com dentes caindo tem a ver com medo e insegurança. É um reflexo do estado emocional e psicológico, talvez até um alerta da mente para um 'acalma-te!'. Espiritualmente, é um aviso de perda de controle de algo ou de si mesmo."

Significados de sonhos comuns

  • Cobra: falsidade, mudanças ou cura
  • Perda dos dentes: medo e insegurança
  • Morte: fim ou renascimento
  • Queda, fuga e perseguição: medo, culpa, sentimento de estar preso
  • Não conseguir falar, gritar ou se mover: repressão, bloqueio, necessidade de liberdade, ansiedade
  • Casa com muitos cômodos: sentir-se perdido, dúvida, falta de organização
  • Escorpiões: mudanças, poder, coragem, cuidado a perigos
  • Ex-namorados: passado, necessidade de desapego, situações mal resolvidos (não só com o ex)
  • Poderes: estar mais forte, determinação, sinal para tentar e continuar
  • Voar ou flutuar: liberdade, independência, despertar
  • Estar nu: vergonha, insegurança, vulnerabilidade

Fonte: Taróloga e astróloga Beatriz Lima

A ciência por trás do sonho 

A neurologista e médica do sono Carolina Colaço reforça que dormir está longe de se “desligar”. “É como trocar o modo de funcionamento do cérebro para que, de forma ativa, possa existir limpeza, restauração e construção de memórias do que aprendemos durante o dia.” Ela explica que o sono alterna entre as fases NREM e REM. Na primeira, ocorre a restauração e, na segunda, há intensa atividade emocional. “No REM, há muita atividade em áreas de memória e emoção, útil para integrar experiências.”

Nancilene Gomes Melo e Silva, pós-graduada em medicina do sono, destaca que o cérebro permanece altamente ativo durante o sono e realiza funções essenciais à saúde física e mental. “O cérebro também realiza a ‘limpeza’ de resíduos metabólicos acumulados durante o dia, um processo fundamental para evitar sobrecarga neuronal e manter o equilíbrio cognitivo.”

Os sonhos, segundo Carolina, são fenômenos complexos que têm múltiplas funções. “Sonhar parece ter múltiplas funções, especialmente do ponto de vista emocional: consolidar memórias, treinar respostas emocionais e favorecer a criatividade ao combinar ideias improváveis.” Ela cita ainda a hipótese do “simulador de ameaças”, em que o cérebro ensaia cenários difíceis para preparar o comportamento.

A lembrança dos sonhos também varia de pessoa para pessoa. “Depende do momento do despertar, da estrutura do sono e de características individuais”, explica Nancilene. Carolina complementa: “Quem lembra mais dos sonhos, possivelmente, está fragmentando mais o sono durante o REM.”

Quando paralisa

Mas o sono nem sempre é tranquilo. A paralisia do sono é um fenômeno que intriga e assusta. “Ela acontece quando acordamos antes do corpo ‘destravar’ da atonia do REM”, explica Carolina. “A mente desperta, mas os músculos ainda estão temporariamente inibidos; dura segundos a poucos minutos. Podem ocorrer alucinações e sensação de presença, mas é benigno.”

O estudante de direito Luís Eduardo de Morais Sardinha, 21 anos, tem sonhos marcantes, intensos e sem nexo com a realidade, como cair em uma escada em espiral. No entanto, o que mais lhe chama a atenção são as experiências com paralisia do sono. “Sempre sinto alguma presença ao meu redor, próxima ou em cima de mim. Já senti a respiração dessa presença, próxima ao meu rosto”, relata. Luís acredita que há uma explicação científica, mas também espiritual: “Acredito nos espíritos, na imortalidade e que essas presenças são pessoas desencarnadas, pouco evoluídas espiritualmente, que gostam de nos atormentar.”

Nancilene detalha que essa condição ocorre “quando a atonia muscular típica da fase REM persiste por alguns segundos ou minutos enquanto a consciência já despertou”. Ela recomenda manter uma boa higiene do sono, com horários regulares para dormir e acordar, ambiente tranquilo e escuro, evitar cafeína e álcool à noite e buscar relaxamento antes de deitar.

Carolina acrescenta que dormir de lado, e não de costas, pode reduzir os episódios. “Se for frequente, com sonolência excessiva ou outros sintomas, vale investigar narcolepsia e outros distúrbios do sono.”

A qualidade do sono é determinante para o corpo e para os sonhos. “Sono ruim costuma gerar sonhos mais negativos e fragmentados, e até ‘rebote de REM’”, diz Carolina. “Já um sono consistente melhora o humor, a aprendizagem e a produtividade.”  

Pesadelos e sonhos vívidos são comuns em momentos de sobrecarga emocional. “O estresse e a ansiedade aumentam a atividade das áreas cerebrais responsáveis pelas emoções, resultando em sonhos mais intensos, fragmentados ou negativos”, afirma Nancilene. “Quando o sono é contínuo e suficiente, o cérebro completa seus ciclos, incluindo períodos adequados de sono REM, o que garante o processamento de memórias e emoções”, acrescenta.

No fim das contas, os padrões de sono e sonho revelam sobre questões emocionais e físicas. “O sono é um sinal vital; quando ele muda, vale investigar por qual motivo o cérebro e o corpo estão pedindo atenção”, ressalta Carolina. 

O que eles dizem

Para entender mais a relação das pessoas com os sonhos, a Revista distribuiu um formulário de pesquisa. Das 40 pessoas entrevistadas, com idades entre 14 e 71 anos, a experiência noturna revela muito sobre emoções, crenças e formas de perceber o inconsciente. Mais da metade dos participantes afirmou lembrar quase sempre dos sonhos, enquanto o restante se divide entre quem lembra às vezes e quem raramente se recorda. A frequência também varia: a maioria relatou sonhar ou lembrar dos sonhos algumas vezes por semana, seguida por quem sonha todas as noites, e um grupo menor que afirma sonhar apenas uma vez por semana ou menos.

Os sonhos recorrentes aparecem em boa parte das respostas. Alguns mencionam quedas, perseguições, dentes caindo, atrasos, vozes que não saem, afogamentos, casas com muitos cômodos, água, ex-namorados e até poderes mágicos. Embora os temas sejam diversos, muitos repetem o sentimento de não conseguir concluir algo ou de estar fugindo de uma situação.

Já os sonhos marcantes variam entre experiências assustadoras, emocionais e espirituais. Entre eles, estão sonhos sobre mortes, reencontros com familiares falecidos, sensações divinas, guerras, perseguições, situações de violência, vitórias pessoais e viagens muito reais. 

Quando questionados se acreditam que os sonhos têm significado, 47,7% responderam que às vezes; 35% acreditam que sim e 17,5% disseram que não. Entre eles, há quem busque sempre o sentido simbólico e quem diga não acreditar, mas admita pesquisar por curiosidade.

Sobre as emoções vividas durante os sonhos; 45% relataram sentir ansiedade ou medo; 30% curiosidade ou surpresa; 15% felicidade e 10% neutralidade ou confusão. Apesar de a sensação de tensão ou alerta ser predominante, a sensação de esperança e paz também é desencadeada pelas imagens noturnas. 

Sobre tentar controlar o que sonham, mais da metade respondeu que sim, embora nem todos tenham conseguido. Cerca de um terço dos participantes afirmou ter vivido sonhos lúcidos, em que percebe que está sonhando e consegue interferir de alguma forma. Outros relataram já ter tentado, mas sem sucesso, e uma parcela menor nunca tentou.

A opinião acerca do que mais influencia os sonhos mostra que o inconsciente é visto como reflexo da vida desperta. 42% dos entrevistados acreditam que emoções e preocupações do dia influenciam diretamente os sonhos. Em seguida, 23% apontaram desejos e medos inconscientes; 18% citaram fatores espirituais; e 17% acreditam que os sonhos resultam da aleatoriedade do cérebro.

Mesmo com interpretações diferentes, os resultados mostram que a maioria das pessoas enxerga o sonho como algo que reflete o emocional e o cotidiano, mas que, ao mesmo tempo, guarda um mistério que foge da razão.

Sonhos nas telas

  • A origem: acompanha um ladrão fugitivo que rouba segredos do subconsciente das pessoas por meio dos sonhos. Para poder voltar para a família, ele recebe a missão de plantar uma ideia na mente de um herdeiro.

  • A maldição da Residência Hill: a série de terror psicológico mostra os sonhos como uma forma de explorar traumas e memórias dos personagens.

  • O pesadelo — paralisia do sono: o documentário explora os horrores da paralisia do sono.

 

  • Filme de ficção científica e ação, A origem (2010) explora o universo dos sonhos
    Filme de ficção científica e ação, A origem (2010) explora o universo dos sonhos Fotos: Divulgação
  • Série de terror A maldição da Residência Hill (2018)
    Série de terror A maldição da Residência Hill (2018) Divulgação
  • Cena de O pesadelo - paralisia do sono (2015)
    Cena de O pesadelo - paralisia do sono (2015) Divulgação

 

 


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postado em 16/11/2025 06:00
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