
A mente humana é recheada de mistérios. Dentro dessa camada ainda desconhecida, duas forças opostas colidem e se misturam: a psicose, que distorce a própria realidade com delírios e alucinações, e o afeto, que dita a emoção entre picos de euforia e de desespero. É nessa intersecção, um ponto cego no mapa da saúde mental, que reside o transtorno esquizoafetivo. Essa condição é um espectro clínico que tem desafiado os psiquiatras a redefinirem as fronteiras entre a esquizofrenia e o transtorno bipolar, exigindo um olhar que vá além das categorias e reconheça a complexidade do indivíduo.
Esse quadro psiquiátrico confronta classificações tradicionais por apresentar uma simultaneidade de sintomas da esquizofrenia e dos transtornos de humor (como depressão ou transtorno bipolar). Considerado um diagnóstico relativamente recém-descoberto na psiquiatria, ele surgiu para abrigar quadros clínicos que não se encaixavam completamente em nenhuma das categorias clássicas.
No Congresso Brasileiro de Psiquiatria, que aconteceu no Rio de Janeiro, no início do mês, o tema foi abordado de maneira ampla e profunda. Presente no evento e um dos palestrantes sobre o assunto, Antonio Peregrino, médico psiquiatra, professor da Universidade de Pernambuco e Presidente da Academia Pernambucana de Medicina, define o quadro: "O transtorno esquizoafetivo é uma condição médico-psiquiátrica na qual o paciente apresenta sintomas característicos da esquizofrenia, sobretudo de perseguição, delírios persecutórios e alucinações, geralmente auditivas", explica.
Há, também, sinais de transtorno afetivo, tal como depressão ou excitação do humor, chamados e conhecidos de mania ou hipomania. De acordo com o profissional, é importante, acima de tudo, reconhecer a distinção e a coexistência desses sintomas. Peregrino afirma que, na esquizofrenia, predominam os sinais psicóticos, sem sintomas de humor, enquanto nos transtornos afetivos, como o bipolar, há fases de humor deprimido ou excitado, porém sem os indícios psicóticos esquizofrênicos.
Segundo o psiquiatra, o diagnóstico de transtorno esquizoafetivo (presente no código 6A21 na CID-11) exige a identificação simultânea e completa de dois conjuntos de sintomas que, de outra forma, definiriam duas condições distintas. Isso significa que o paciente deve apresentar os sintomas centrais da esquizofrenia, como delírios (crenças falsas e fixas) e alucinações (geralmente ouvir vozes), além de outros critérios formais, bem como manifestações relacionadas ao transtorno de humor.
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Descoberta recente
O surgimento dessa classificação cobriu uma lacuna de diagnóstico, como aponta Raphael Boechat, psiquiatra e professor do Centro Universitário Uniceplac. "O esquizoafetivo é mais recente, data da penúltima classificação, tem algo em torno de três décadas. Todos os psiquiatras e pesquisadores viram que necessitava dessa classificação porque tinham quadros que ficavam no meio termo, não entravam nem como esquizofrenia nem como transtorno de humor", esclarece.
Desse modo, o transtorno esquizoafetivo geralmente surge na adolescência ou na fase de adulto jovem, de forma semelhante à esquizofrenia e ao transtorno bipolar, e pode ter correlação genética, envolvendo históricos familiares de ambos os transtornos. A identificação do quadro, de acordo com o psiquiatra, é estritamente clínico, feito pela observação da psicopatologia — sintomas psicóticos e de humor.
Devido à sua complexidade, o transtorno impõe desafios diários significativos. "Trata-se de condição mental complexa e que compromete muito a funcionalidade do indivíduo acometido. Não há exames laboratoriais ou de imagem nem mesmo testes psicológicos para diagnóstico", afirma Peregrino, destacando a dificuldade do paciente em garantir para si mesmo qualidade de vida.
Melhoras significativas
O tratamento para esse quadro, que não é nada fácil, visa à máxima estabilização e manutenção do quadro sem fase de doença ativa. É uma condição mental complexa, que compromete a funcionalidade do indivíduo acometido, tornando a vida pessoal, o trabalho e os estudos um lugar muito difícil para o paciente.
A abordagem principal é farmacológica, com medicamentos que atuam nas duas dimensões da doença. "O tratamento envolve psicofármacos (medicamentos) que tenham ação antipsicótica e de estabilização do humor", detalha Boechat. Eventualmente, especialmente em alguns casos, pode ser necessário o uso de antidepressivos, porém fundamentalmente o tratamento recai em antipsicóticos e nos fármacos que são chamados de estabilizadores do humor.
Boechat destaca que o tratamento é "muito dinâmico", sendo ajustado conforme o subtipo do transtorno (mania ou depressão). "Se o paciente manifesta mais episódios de mania, o foco será um estabilizador de humor, junto com antipsicóticos para a fase da psicose. Já se predominam os sintomas depressivos, ele usará antidepressivos e antipsicóticos", completa o psiquiatra.
Apesar dos desafios, o especialista indica que a melhora tende a acontecer de forma significativa, à medida que a doença é detectada e compreendida no paciente. "Em geral, a evolução é melhor do que da esquizofrenia", comenta, alertando que os diagnósticos psiquiátricos não devem ser vistos como verdades absolutas, já que a ciência e as classificações estão em constante evolução.
Principais sinais
Os sintomas são uma combinação das duas esferas:
Sintomas psicóticos: incluem delírios (persecutórios, místicos ou de autorreferência), alucinações (geralmente auditivas, como ouvir vozes acusatórias) e pensamento desagregado.
Sintomas de humor: Podem ser um episódio depressivo (humor deprimido, anedonia, insônia, baixa energia) ou sintomas de euforia/mania (aumento de energia, gastos excessivos, pressão para falar, irritabilidade).
Saiba Mais
O repórter viajou ao Rio de Janeiro a convite da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP)

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