Por décadas, bastava uma caminhada pelo bairro para encontrar uma costureira. Elas sabiam de cor o caimento de cada tecido, o tamanho exato do zíper que faltava e, com agulha e linha, salvavam roupas e histórias. Hoje, porém, as portas desses ateliês caseiros estão se fechando. O Brasil ainda tem cerca de 9,3 milhões de profissionais da costura, considerando empregos diretos e indiretos, mas o perfil da categoria mudou: o "feito sob medida" virou raridade, e quem domina o ofício envelhece com poucas sucessoras.
No ateliê de Francisca Fernandes, 76 anos, o som ritmado da máquina de costura ainda ecoa como trilha de uma vida inteira dedicada às linhas, aos tecidos e aos moldes. Entre tecidos coloridos, carretéis de linha e moldes espalhados pela mesa, ela se recorda de quando tudo começou, ainda adolescente, no interior, quando costurar era um sonho distante e caro. "Eu era adolescente, trabalhava na roça, no interior do Ceará, para ajudar meus pais e não tinha dinheiro para pagar o curso de costura. Meu pai me deu um leitãozinho, um bacurizinho que a mãe rejeitou, e eu o criei dando uma mamadeira. Quando cresceu, botei no chiqueiro para engordar e vendi. Com esse dinheiro, eu paguei meu curso de costura e, assim, comecei", conta.
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Francisca hoje tem 40 anos de profissão. Aprendeu o ofício por necessidade, mas fez dele uma forma de independência. No início, costurava apenas para si, incomodada com as roupas remendadas que usava na roça. "A gente era uma família pobre, morava em fazenda e não tinha muitas coisas. As roupinhas eram rasgadas, minha mãe botava pedaço de outras cores e eu achava aquilo horrível, então fui aprender a costurar para fazer esses reparos."
Com o passar dos anos, Francisca montou seu próprio ateliê, já na cidade grande. Começou com pouco, mas conquistou uma clientela fiel. Mesmo com a alta procura, percebe as transformações das demandas e o quanto as exigências aumentaram. De acordo com a costureira, as clientes procuram profissionais com mais experiência, buscam peças bem-feitas.
E, se por um lado há mais roupas para ajustar, por outro falta quem queira aprender o ofício. "Hoje em dia, costureira está muito difícil, você não consegue costureira boa. E os jovens não se interessam, não querem. Eu tiro bem pelas minhas filhas, nenhuma quis. Das netas, só uma agora está fazendo o curso."
A nova geração
Heloiza Barros, de 19 anos, neta de Francisca, é a exceção na família. Ainda aprendendo a costurar, ela ajuda a avó no dia a dia do ateliê e começou recentemente um curso para se aprimorar no ofício. Apesar de ainda estar em processo de aprendizado, trabalha no ateliê da avó há um ano, anotando os consertos, entregando as peças para as clientes e em auxílios similares.
Entre anotações, barras e pequenos ajustes, Heloiza começa a trilhar o mesmo caminho que a avó percorreu há décadas. No curso de costura há três meses, ela é a pessoa mais nova da turma. "Minhas motivações foram minha avó e ver que cada roupa que a gente compra nunca está perfeita, pois cada um tem um corpo diferente", reflete.
Para ela, o trabalho é bonito, mas ainda pouco reconhecido. Mesmo que a maior parte das clientes sejam fixas e façam confecções com a avó dela há muito tempo, chegam pessoas que reclamam dos valores ou acham que podem precificar o trabalho do outro.
Apesar de o interesse pelo ofício ser baixo entre os mais jovens, a procura pelo serviço continua ampla e não se limita a uma idade. Segundo Heloiza, ela e a avó recebem encomendas de mulheres jovens, idosas e, mesmo que em menor quantidade, homens também fazem parte da clientela. “Acho que porque as mulheres são mais vaidosas que os homens.”
Heloiza fez apenas três peças do zero, um cropped, uma saia e um vestido, que ainda não está finalizado. Mesmo assim, ela representa uma geração rara, a dos jovens que ainda se interessam pela costura artesanal, um ofício que vem desaparecendo à medida que as costureiras envelhecem e a valorização financeira segue insuficiente.
Desvalorização
De acordo com Antônia Lima, 69 anos, professora de corte, costura e modelagem há décadas, o cenário é claro: há procura por costureiras, mas falta quem queira ocupar esse espaço. Ela percebe um padrão entre os alunos que frequentam seus cursos. "No meu caso aqui, as pessoas que mais procuram são aposentadas, estão à procura de fazer outras coisas, mexer com costura para filho, para neto, para ocupar o tempo. Já o jovem não procura."
O motivo, segundo ela, é a desvalorização da profissão. "Eu não tenho 100% de certeza, mas acredito que é porque é uma profissão que é bem desvalorizada. Eu pertenço a grupos de costureiras e a questão maior é a dos valores. Até que emprego tem, pois há muita procura por costureira, mas o problema é que o salário é tão pouco que, às vezes, acaba desestimulando as pessoas."
Antônia reforça que o mercado ainda tem espaço, mas, por não oferecer tantos benefícios, não consegue reter profissionais. A fala da professora ecoa a experiência de Francisca, que sente na pele a falta de reconhecimento. "Muitas pessoas não dão valor porque é um trabalho que toma muito tempo, precisa de muito capricho e é um serviço demorado", diz a costureira.
Ainda assim, Francisca segue firme, movida pelo amor pelo que faz. Costura peças do zero, ajusta barras, conserta vestidos e transforma tecidos simples em peças que voltam a ter vida. "Os reparos mais pedidos são barra de calça e vestido e cós de calça. Para fazer (do zero), as peças mais pedidas são vestido e blusa."
Para o personal stylist Fernando Lackman, no entanto, há um retorno recente da valorização do artesanal, que é uma oportunidade de resgate da profissão. "O que antes era visto como antigo, hoje, virou resistência. Costurar é um ato político e poético: desacelerar o processo para reconectar a roupa à sua origem."
Ele acredita que a geração mais jovem pode redescobrir o encanto da costura, especialmente quando entende o valor da personalização. "Cada corpo é único, e uma roupa feita sob medida é um diálogo entre criador e pessoa. Isso nenhuma máquina reproduz."
Entre linhas e lembranças
As linhas que atravessam gerações fazem parte da costura que, mesmo sem o devido reconhecimento, continua sendo um encontro entre o passado e o futuro. Lázara Souza, 79 anos, aprendeu a costurar ainda menina, no interior de Goiás. A mãe, que percebia sua habilidade natural com linhas e tecidos, decidiu investir no talento da filha e pagou um curso com a melhor modista de Anápolis. "Na primeira vez que ela me ensinou, eu já aprendi tudo certinho", lembra, com orgulho.
O desempenho foi tão surpreendente que, logo nas primeiras aulas, a professora pediu que ela colocasse em prova o vestido de uma cliente, sem perceber que era a aluna, e não ela, quem havia feito o trabalho. "Minha mãe pagava para eu aprender, e ela (a professora) me pagava porque eu ajudava", conta. Aos 15 anos, Lázara já tinha o domínio da técnica e a paixão pelo ofício que a acompanharia por toda a vida.
Pouco tempo depois, mudou-se para Brasília. Começou trabalhando como babá, mas nunca abandonou a costura. "Eu fazia uns vestidinhos e vendia. Comprava o tecido, costurava, e as mães compravam porque as crianças gostavam muito de mim", lembra. A habilidade e o cuidado nos detalhes logo chamaram a atenção. Casou-se aos 19 e, já adulta, passou a se dedicar exclusivamente às roupas de festa. "Eu fazia alta costura, só pano caro. Nem sabia que era alta costura até fazer um curso e a professora me dizer", conta, rindo. Durante décadas, confeccionou vestidos de madrinhas, noivas e debutantes, peças únicas que marcaram gerações.
A costura, para Lázara, sempre foi mais do que trabalho, foi autonomia. "Eu escolhi essa profissão. Ficava feliz de ver minhas clientes saindo contentes e, com isso, ajudava meu marido e meus filhos", diz. Ajudava tanto que, em muitas fases, chegou a ganhar mais do que o próprio marido. "Quando compramos a casa, foi com o meu dinheiro. Eu costurava para as madames do Plano Piloto, com tecidos finos, veludo alemão, renda francesa, seda pura. Tudo pano importado e difícil de costurar."
Entre moldes, zíperes e linhas de seda, ela virou referência entre as mulheres elegantes da capital. O sucesso foi tanto que, sem perceber, Lázara se tornou uma das costureiras mais disputadas da cidade, símbolo da costura feita com precisão e amor. Com o tempo, vieram as pausas e os retornos. Quando ficou viúva, enfrentou momentos difíceis e precisou se mudar para Anápolis. Lá, cuidou das netas e da irmã, e a máquina ficou parada por um tempo. "Depois, voltei para cá, e todo mundo me procurou de novo. Minhas freguesas antigas. Então, eu voltei a costurar roupa de festa, até ficar idosa e não aguentar mais", conta. "Eu sempre fui muito exigente. O povo virava as costuras pelo avesso e não achava defeito."
Entre todas as peças que fez, há uma que nunca esquece: o vestido de casamento da irmã mais nova. "Ela me enganou. Disse que queria um vestidinho simples, mas mandou vir do Rio de Janeiro uma peça de tule bordado caríssima. Fiz o vestido de presente, e foi o mais bonito de todos. Todo mundo ficou encantado quando ela entrou." Hoje, já afastada da máquina, ela ainda fala da profissão com brilho nos olhos: "Eu vivi da costura, mas o que me sustentou mesmo foi o amor que eu tinha por ela."
Costura artesanal
Com as mãos marcadas por décadas de trabalho e o olhar atento a cada detalhe, Odete Pires, 67 anos, mantém viva uma tradição que resiste ao tempo: a costura artesanal. Há mais de 20 anos, ela também transforma tecidos em histórias, de vestidos de festa a simples ajustes do dia a dia, no ateliê montado em sua própria casa, em Águas Claras.
"Eu sempre gostei, desde criança. A necessidade de ter um trabalho, de não precisar sair de casa, foi o que me motivou", conta. Entre linhas, moldes e tesouras, ela construiu uma clientela fiel. "Tenho muita demanda. As clientes gostam muito do meu trabalho e me indicam. Faço de tudo: ajusto roupas grandes, pequenas, aumento, reformo. Só não consigo mais pegar encomenda muito grande sob medida, porque trabalho sozinha."
Odete viu a profissão mudar. As lojas de departamento se multiplicaram e o "feito à mão" perdeu espaço para o "feito em série". Ainda assim, o movimento não parou. "Para reforma, sempre tem procura. As pessoas compram roupas baratas, mas sem qualidade. Então acabam vindo até mim para ajustar. Nunca uma peça vem perfeita."
O que diminuiu, segundo ela, foi o interesse das novas gerações. "A maioria dos jovens não quer trabalhar com isso. É um trabalho demorado, que exige paciência. Às vezes, você passa duas horas só conversando com a cliente até ela decidir o modelo do vestido", diz, sorrindo.
Durante a pandemia, o trabalho dobrou de intensidade. "Eu ia até o Noroeste buscar as roupas e devolver na casa das clientes. Fiquei tão cansada que acabei doente. Este ano já não faço mais isso", lembra. Ainda assim, ela não pensa em parar. "Enquanto eu puder costurar, vou continuar. É um trabalho que me dá prazer, e ver um cliente feliz é o melhor pagamento."
Francinete Cutrim, 69 anos, veio do Maranhão para Brasília ainda jovem. No interior, aprendeu a costurar observando a mãe. "A costura, para mim, representa a minha vida, muito mais que uma profissão", diz. O primeiro trabalho foi um short para o irmão. "Eu nem sabia direito o que estava fazendo, mas deu certo. Quando ele vestiu, fiquei tão feliz que nunca mais larguei a agulha."
Aos 19 anos, quando se mudou para o Distrito Federal, foi a costura que a sustentou. Começou fazendo pequenos ajustes para vizinhos, depois passou a criar peças sob medida. Hoje, trabalha das 8h da manhã às 10h da noite. "O desafio é encontrar ajudantes. Trabalho sozinha, faço todo tipo de roupa, acompanhando as tendências, o que está nas ruas."
O apagamento por trás das etiquetas
O personal stylist Fernando Lackman acredita que a invisibilidade das costureiras é uma das maiores injustiças do setor. "A costureira surge como figura central quando o vestir passa a ser mais do que proteção — torna-se expressão", explica. "Mas a moda valorizou o nome do criador, não de quem executa. A costura foi vista como trabalho doméstico, associado ao feminino e ao serviço, não à arte."
Para ele, o brilho das passarelas acabou ofuscando as mãos que tornaram o luxo possível. "Há um apagamento simbólico que mistura desigualdade de gênero, classe e reconhecimento profissional. São mulheres que construíram a base da moda brasileira, mas quase nunca tiveram seus nomes lembrados."
Entre rendas francesas e tecidos simples, entre vestidos de festa e uniformes escolares, Francisca, Heloiza, Lázara, Odete e Francinete seguem costurando um Brasil que insiste em existir à margem do brilho das vitrines. Suas histórias se entrelaçam numa narrativa silenciosa de trabalho, dedicação e arte. Para muitas delas, a costura foi a primeira forma de autonomia, uma maneira de garantir sustento e dignidade.
O estilista resume o apreço dessas mulheres pelo detalhe, e a paciência com precisão: "A costureira é a costura viva entre o luxo e o cotidiano. Ela ensina que se vestir bem não depende da etiqueta, mas do cuidado. Por trás de toda grande criação, há mãos invisíveis que transformam o tecido em emoção".
*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte
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