Em nota oficial, a fundação espanhola explicou que “o júri reconhece sua trajetória artística excepcional, seu espírito de superação e seu compromisso com a transformação social por meio da música”.
Durante a cerimônia, o maestro reafirmou que não pretende se afastar dos palcos. “Tenho 85 anos e, ao receber o Prêmio José Manuel Martínez Martínez, sinto-me profundamente motivado a iniciar uma nova etapa da minha vida, desta vez como educador musical, e assim tentar deixar um legado através da música”, declarou.
Nascido em São Paulo em 25 de junho de 1940, João Carlos Gandra da Silva Martins tornou-se um dos maiores nomes da música erudita brasileira.
Pianista e maestro reconhecido internacionalmente, ele é celebrado especialmente por suas interpretações e gravações das obras de Johann Sebastian Bach. Ele é irmão do jurista Ives Gandra Martins e do pianista José Eduardo Martins.
Seu pai, José Martins, era um português natural de Braga que emigrou para o Brasil após uma infância difícil. Mesmo tendo perdido o polegar em um acidente de trabalho, ele manteve viva a paixão pelo piano e a transmitiu para os filhos.
João Carlos cresceu cercado por estímulos musicais. Aos oito anos, já vencia concursos interpretando Bach, e aos 11 dedicava seis horas diárias ao estudo do instrumento. Foi aluno do renomado professor russo José Kliass, radicado no Brasil, e ainda jovem conquistou o Concurso da Sociedade Brito de São Petersburgo.
O talento precoce abriu-lhe portas no exterior. Aos 18 anos, foi selecionado para o Festival Pablo Casals, onde representou as Américas e se apresentou em Washington, iniciando uma carreira internacional brilhante.
Aos 20 anos, estreou no Carnegie Hall, em Nova York, com o patrocÃnio da primeira-dama dos Estados Unidos Eleanor Roosevelt, e passou a se apresentar com grandes orquestras americanas.
O pianista brasileiro também foi o responsável por inaugurar o Glenn Gould Memorial, em Toronto, e gravou a obra completa de Bach para piano, consolidando sua reputação mundial.
Sua trajetória, porém, foi marcada por inúmeros obstáculos físicos. Em 1965, durante um jogo de futebol amador no Central Park, sofreu uma lesão grave no braço direito, que atingiu o nervo ulnar e comprometeu parte dos movimentos.
Afastado do piano, tornou-se empresário do boxeador Éder Jofre, experiência que o inspirou a lutar novamente pela recuperação. Com o tempo e muita fisioterapia, voltou a se apresentar, mas novos problemas musculares e neurológicos o obrigaram a se afastar dos palcos mais de uma vez.
Mesmo com limitações motoras, Martins continuou a gravar. Entre 1979 e 1985, registrou dez volumes da obra de Bach, adaptando a técnica às sequelas.
Em 1995, durante um assalto em Sófia, na Bulgária, foi golpeado na cabeça com uma barra de ferro, o que agravou as sequelas neurológicas e afetou seus movimentos e a fala.
Após cirurgias e reabilitação, gravou seu último álbum com as duas mãos e, mais tarde, o disco “Só para Mão Esquerda”, com peças compostas por Maurice Ravel para o pianista Paul Wittgenstein.
Com o tempo, também perdeu o movimento da mão esquerda por causa de uma contratura de Dupuytren. Diante da impossibilidade de continuar tocando, teve um sonho com o maestro Eleazar de Carvalho, que o inspirou a iniciar uma nova etapa como regente.
Desde então, passou a memorizar integralmente cada obra - uma exigência de sua limitação física -, o que o levou a decorar milhares de páginas de partituras. Em 2004, regeu a English Chamber Orchestra, em Londres, gravando os Concertos de Brandemburgo e as Suítes Orquestrais de Bach, lançadas mundialmente.
Em 2011, ele recebeu uma grande homenagem no carnaval paulistano. A escola de samba Vai-Vai levou à avenida o enredo “A Música Venceu”, celebrando a trajetória de superação do maestro, que desfilou regendo a bateria e viu a agremiação conquistar o título do ano.
Em 2012, Martins passou por uma cirurgia cerebral que implantou eletrodos conectados a um estimulador eletrônico no peito, ajudando-o a recuperar parte dos movimentos da mão esquerda, que havia ficado atrofiada por uma década.
Em 2020, um novo capítulo de superação: graças a uma luva biônica desenvolvida pelo designer Ubiratan Costa, o maestro voltou a tocar com as duas mãos durante as comemorações do aniversário de São Paulo. A cena simbolizou, mais uma vez, a marca de sua vida - a música como força maior diante de todas as limitações.
A história de João Carlos Martins chegou ao cinema e à televisão. Em 2017, o filme “João, o Maestro”, dirigido por Mauro Lima, dramatizou sua vida em três fases, com interpretações de Davi Campolongo, Rodrigo Pandolfo e Alexandre Nero.