RACISMO ESTRUTURAL

Casal de igreja de Michelle Bolsonaro comete blackface em festa religiosa

Os dois cometeram uma prática racista criada há 200 anos para ridicularizar negros a fim de entreter pessoas brancas. Igreja afirma que eles não tinham "intenção de serem racistas"

Talita de Souza
postado em 27/10/2021 19:51 / atualizado em 27/10/2021 20:04
 (crédito: Instagram/Reprodução)
(crédito: Instagram/Reprodução)

A foto de um casal branco pintado de preto e com uma peruca que simula um black power causou revolta nas redes sociais, nesta quarta-feira (27/10). No registro, publicado no perfil do Instagram do homem, ele explica que a ‘caracterização’ era uma fantasia para participar de uma festa da Igreja Batista Atitude de Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, no último sábado (23/10).

A ‘fantasia’ do casal remete ao blackface, uma prática racista de mais de 200 anos, usada principalmente nos filmes e no teatro, na qual pessoas brancas escureciam o tom da pele para ridicularizar negros. Na atuação, eram reforçados estereótipos racistas com o único objetivo de entreter pessoas brancas. A prática contribuía para o fortalecimento do racismo estrutural, por desumanizar negros e fazê-los ser vistos como alegorias ou anomalias.

Nas redes sociais, a postagem foi duramente criticada. “Casal se fantasia de ‘nega maluca’ em festa da igreja! Vocês tão entendendo a gravidade da nossa realidade??? Enfrentar o racismo na igreja é urgente!”, declarou Jackson Augusto, da Coordenação nacional do Movimento Negro Evangélico.

“Meu estômago revira de tanto ódio... A vontade é de dar um socão nesses racistas”, diz outro usuário em resposta. “Por isso não quero ir pra igreja mais”, lamenta outro perfil.

A igreja do casal, onde ocorreu a festa, é ligada à sede situada na Barra de Tijuca, onde Michele Bolsonaro era membro enquanto morava no Rio de Janeiro. Hoje, ela congrega na filial da mesma igreja em Brasília.

A sede da Igreja Batista Atitude, na Barra da Tijuca, já esteve com o nome envolvido em outra polêmica sobre racismo, em julho de 2019, quando a instituição abrigava um evento da Juventude Batista Brasileira (JBB). Na ocasião, uma das mesas redondas, que iria tratar sobre racismo na igreja, foi cancelada em cima da hora.

Ao dar a notícia do cancelamento, o líder da JBB na época, Amnom Lopes, afirmou que a retirada do debate Descolonizando o Olhar: o Racismo Atinge a Igreja? do evento aconteceu "por motivos alheios" à sua vontade. Em tom de lamento, ele ainda afirmou que ninguém iria incutir viés político na JBB e que, ao citar espectros políticos, disse que "na mesa só tem gente do mesmo lado. Mas é porque contra racismo só tem um lado mesmo, gente. Se não é o lado que condena o racismo como prática pecaminosa, não tem outro lado”.

Movimento negro e Câmara Municipal se manifestam contra o episódio

O Segmento de Culturas Afro-Brasileiras, quilombolas e de matrizes africanas de Petrópolis (RJ) também comentou o caso. “Infelizmente hoje acordamos com práticas inaceitáveis em nossa cidade de Petrópolis. Um casal resolve se fantasiar, pintando o corpo de tinta preta e colocando uma peruca encrespada, simbolizando a população negra. Importante frisar que o corpo negro não é entretenimento e muito menos uma fantasia para alegrar festas”, pontuaram em nota de repúdio.

“Práticas como esta, são enquadradas no racismo recreativo, uma forma de desumanizar a população negra , utilizando de forma depreciativa tal atitude. Solicitamos que as autoridades locais, tomem as medidas cabíveis”, solicitaram.

Mais tarde, o vereador Yuri Moura (PSOL-RJ), presidente da Comissão de Educação, Assistência Social e Direitos Humanos (CEADH) da Câmara Municipal de Petrópolis, afirmou que a Comissão redigiu uma notícia-crime que será encaminhada ao Ministério Público local. “O povo negro não pode ser desrespeitado e ridicularizado!”, escreveu o parlamentar.


O que dizem as partes

Após as críticas, o homem que postou a foto alterou a privacidade do perfil do Instagram para que apenas pessoas que o seguem veja as fotos postadas. 

A Igreja Batista Atitude de Petrópolis publicou nota oficial nas redes sociais em que afirma que, na festa, “os participantes foram vestidos de fantasias escolhidas a critério de cada um, individualmente”. A instituição também defendeu o casal.

“As partes envolvidas não tinham conhecimento do que é ‘blackface’, portanto, fizeram suas fantasias sem a intenção de serem racistas. Sabemos quem somos como igreja e jamais admitiremos qualquer tipo de discriminação em nosso meio”, escreveram.

Na nota, assinada pelo pastor Wallace Cardozo, a igreja ainda afirma que em nenhum momento fizeram “qualquer tipo de discriminação”. Nós amamos a todos, sem exceção, assim como Cristo nos ensina em João 13.34”, escreveram.

A passagem citada se refere a uma fala de Jesus que estabelece um “novo mandamento”: amar uns aos outros. No entanto, a igreja não se desculpou pelos que se sentiram ofendidos pelo ato.

Nêga maluca: o blackface brasileiro que foi abraçado em carnavais

“Casal faz blackface em festa de igreja e a pessoa tentando justificar diz: 'Eles não se pintaram de negros, se fantasiaram de Nêga Maluca'”, criticou um usuário nas redes sociais. Ele faz referência ao personagem Nêga Maluca, que nada mais é do que uma criação brasileira que faz, em resumo, o mesmo do blackface.

Popular no carnaval, a prática se individualizou em um estereótipo específico: a da mulher negra sexualizada e extravagante. É, para especialistas, o exemplo perfeito para o racismo recreativo: o que é feito com desculpa de ser brincadeira ou para divertir outros.

“A personagem é a representação exacerbada e totalmente estereotipada da mulher negra: preta, pobre, descabelada, com sua sexualidade explorada, exposta e hipervalorizada, sorridente ao extremo, o que muitas vezes pode representar uma falta de senso crítico diante das mazelas da vida”, explica um artigo do Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-Brasileiros da Universidade Estadual de Maringá.

“Projetar nas mulheres negras um comportamento passivo, sorridente, que absorve as dificuldades e as mazelas da vida com risos e tolerância, priva até mesmo a liberdade individual de cada mulher, de também ter direito de exigir dignidade e respeito”, complementa o estudo. “A fantasia jamais deve ofender alguém, deve proporcionar alegria para quem se fantasia e para todos aqueles que veem essa fantasia“, pontua o texto.

 

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